11.8.10

É uma questão de linguagem, pá


In http://img.mercadolivre.com.br/jm/img?s=MLB&f=82674030_5561.jpg&v=E
(Contém linguagem eventualmente chocante para pessoas mais sensíveis)
Como hei-de formular isto? Ontem foram hipotecados os cânones dos bons costumes. Não que me interesse fazer as vezes de advogado dos bons costumes, matéria viscosa que pertence à individualidade, sem lugar a leis fixadas por um bando de meirinhos das boas regras de conduta na “vida em sociedade”. Mas não resisto a porventura entrar em contradição com a batuta da coerência. É que ontem, o famoso, mumificado presidente de um clube de futebol desta minha cidade reinventou a linguagem aceitável na sã convivência social. Doravante, por determinação de sua excelência, será admissível a linguagem de caserna no meio profissional. E entre nós, súbditos da república, e os seus agentes oficiais empunhando a bandeira da autoridade.
A tal personagem, chamada a testemunha abonatória do seleccionador da “equipa das quinas” em processo disciplinar (mas que raio de abono proporciona tal personagem?), sentenciou que chamar filho da puta a uma autoridade oficial não é ofensivo. E exemplificou, virando-se para um jornalista: cá no norte, diz ele, é costume que um amigo se vire para outro e lhe diga “então, meu filho da puta, como estás?”. De seguida puxou galões ao filólogo escondido e ensinou-nos que às vezes não devemos levar à letra as palavras que se entoam. Ou seja, quando chamamos filho da puta a alguém, isso não quer dizer que a progenitora tenha sido rameira profissional.
Para além de ter confirmado a imagem boçal que certa parte do território tem do norte, a eminência parda do “nortismo” não podia dar imagem mais fidedigna da sua estirpe. Ontem aprendemos isto: que não vem grande mal ao mundo que chamemos filho da puta aos amigos. Temos que saltar os muros da interpretação literal. Aquele tratamento não é ofensivo, até encerra um cunho carinhoso que só reservamos aos amigos.
Perante esta pérola de sabedoria, logo duas perguntas começaram a adejar. Primeira: será que também reservamos o afectuoso tratamento aos familiares? Eu exemplifico, para ficar mais notória a interrogação: a vetusta personagem trata por filho da puta o barbudo irmão especialista em cadáveres? Segunda: a partir de agora, por determinação desta reserva moral da nação, podemos dedicar o simpático tratamento aos funcionários públicos sem corrermos o risco de sentar o rabo no banco dos réus por difamação?
Tenho a impressão que não me engano se a lição de hermenêutica a que ontem assistimos é o retrato impecável do calibre de quem a professou. Ora se a personagem já foi casada (ou amigada, ou lá o que foi) com uma ex-meretriz que até levou à presença do papa, isto significa que ser filho de uma dita cuja não apoucará ninguém – nem o filho, nem muito menos a progenitora. Que não haja juízos morais, nem preconceitos da mesma espécie. O ultraliberal recusa-os. Aliás, o ultraliberal considera aquela uma profissão como outra qualquer (descontando os hediondos parasitas que fazem lenocínio). Se a lição de hermenêutica que ontem nos foi proporcionada fizer doutrina, até tenho a humildade de agradecer ao patriarca do norte porque poderei chamar filho da puta aos funcionários do fisco – e ao ministro da tutela – sempre que for chamado a pagar impostos. Está é a novidade a anunciar em letras gordas. Quanto ao resto, como sabemos, já estamos habituados a tratar colegas de trabalho e superiores hierárquicos usando aquela fórmula como sublime expressão de afecto, digamos, profissional.
Ah, como às vezes as palavras são o maior alçapão para quem as profere. É tudo uma questão de linguagem, pá.

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