6.8.10

Presos cibernéticos – ou do triunfo do nonsense


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Eu tenho esta teoria: o calor faz mal. O tempo tépido mete os miolos em salmoura. Esturricados pelo sol empinado e o bafo tórrido que vem de África, desatamos a disparatar. Afinal as férias são isto mesmo: até das coisas importantes a atenção se desvia. Como o texto de hoje trata de comprovar.
Os meninos de coro de uma prisão em Cascais decidiram fazer greve de fome. Não em protesto contra a qualidade do rancho, ou contra os maus-tratos dos guardas que passam das marcas, ou porque as drogas não chegam atempadamente. Querem novas formas de diversão, que isto de cumprir pena é uma exasperação temporal – o tempo parece que nunca mais passa. Estão em greve de fome para terem a Playstation. Ele há forma melhor de matar o tempo?
Este é outro sinal dos tempos, o dos presos cibernéticos. Já não se contentam com uma jogatana de cartas, ou com campeonatos de dominó. Nos tempos que correm, já ninguém fica admirado se a possibilidade da leitura nem foi listada, que a literatura anda pelas horas da morte. Os apóstolos dos bons costumes, vindos das sacristias – sobretudo aqueles que elegem causas difíceis, que os há no acompanhamento espiritual dos reclusos – estão satisfeitos com o motivo da greve de fome: ao menos os presos não exigiram pornografia.
Estou dividido. Por um lado, o protesto é legítimo. Primeiro, estes são dias em que qualquer protesto acaba, de uma forma ou de outra, por ser legitimado. O direito ao protesto devia ser inscrito na Constituição, até para contrariar os desvarios “neoliberais” da proposta de revisão constitucional do PSD (coitada, condenada ao fracasso). Segundo, os presos devem ser bem tratados nas prisões. De acordo com as boas teorias sociológicas, que se desmultiplicam em explicações implausíveis para provar que os reclusos são vítimas de uma sociedade assolada por injustiças, o tempo na prisão é uma violência atroz. Nós, os que gozamos da liberdade que a prisão cerceia aos que estão encarcerados, temos deveres perante os presos. A nossa consciência adormece mal se os deixarmos entregues à claustrofobia das grades, aos maus hábitos que (dizem) por lá se ganham e que são um cocktail explosivo que os indispõe para a vida em sociedade quando a ela forem devolvidos.
Devemos garantir aos presos o conforto que eles reclamam. Andamos mal se os ajuizarmos como gente pouco recomendável, flores de mau cheiro que, pelos crimes que cometeram, merecem todos os padecimentos que o cárcere traz. Eles querem Playstation para matar os tempos mortos? Seja. Melhor matar os tempos mortos na cadeia do que serem corroídos por uma indomável violência interior que fermenta a continuidade do criminoso logo que saiam da prisão. Aliás, só para dar razão aos pais da actual Constituição (tão ofendidos com a idiota proposta de revisão constitucional do PSD), o direito dos presos a um lazer de primeira água devia vir na Constituição.
Mas, por outro lado, isto preocupa-me. Ouço dizer por aí que há jogos da Playstation que são um volumoso caudal de violências. Há jogos em que os bons da fita são os meliantes que semeiam terror pelas ruas das cidades, matando a eito. Quando matam polícias até recebem um bónus na pontuação. Vá-se lá saber se uns malfeitores, estudiosos da cibernética, tomaram conhecimento deste género de jogos e meteram greve de fome para lhes deitarem a mão. Há melhor forma de terem treino para a violência dentro da própria prisão?
Talvez não fosse mal pensado contrapor aos reclusos outras formas mais agradáveis de matar o tempo. Idas organizadas à praia, ao futebol, aos centros comerciais para deliciarem a vista com as esbeltas donzelas que por lá se passeiam no curto vestuário estival, etc. Já que a sociedade tem deveres perante os malandros encarcerados, ao menos que não permita enxertos de mais violência nos que já foram vítimas da violência inata. Ou então cumpra-se o nonsense e distribuam-se Playstations. Uma por cada preso. A Sony agradece.
(Em Santa Eulália)

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