30.9.10

Epílogo do desamor

In http://poeticasdeoutono.zip.net/images/bancodeoutono.jpg
Entrelaçados os dedos, um furor desabrido irrompia pelas veias, incendiando todos os poros do corpo. Os olhares que se metiam pelos olhos dentro valiam mais do que mil palavras. O êxtase carnal, onde os delírios se ornamentavam, era o altar mais elevado da combustão dos corpos. Cada centímetro de pele era um mapa já tacteado de olhos fechados. Os amantes gritavam através do silêncio dos tempos. Esse grito era o amplexo do vocabulário que só lhes pertencia, no castelo privativo de onde ecoava uma harmonia que derramava cobiça em redor. Era como se o encantamento chegasse para os alimentar.
Os corpos perfeitamente conhecidos: talvez a impossibilidade do conhecimento do resto esbarrasse nesse dilúvio. E como o conhecimento do resto importava! Quiseram edificar uma cumplicidade que só se esboçara em planos idílicos, a cumplicidade nunca materializada. O castelo privativo tinha alicerces de papel, uma fragilidade súbita. As pedras apodrecidas caíam, deixavam à mostra as fendas que o tempo ocultara. As pedras desgastadas não conseguiram resistir à fragilidade dos alicerces. O que dantes não separara os amantes fervia pelas entranhas num insuportável coro desafinado que cantava uma ode à desarmonia. E já nem o estremecimento dos corpos chegava para escorar os frágeis alicerces.
Já não era como dantes. O encantamento perdido. As palavras ditas de sentido esgotado. Era como se elas, ao serem ditas, só tivessem a forma das letras que as compõem; se as abrissem, lá dentro as palavras estavam ocas. Os olhares já não coincidam. Quando os dedos se entrelaçavam, os corpos não se encontravam com o estremecimento de outrora. E se os corpos continuavam a pedir água, ainda e sempre num frémito selvagem que nobilitava a função, já tudo se resumia a isso. Parecia muito, mas era muito pouco. Reduzira-se a quase nada.
Pelo chão da casa era como se só houvesse folhas outonais que se desprendem das árvores em véspera de hibernação. Um sinal de decadência em levitação constante. Os pés pisavam aquelas folhas caducas e nem sentiam saudade dos tempos em que as mãos entrelaçadas magicamente fabricavam as flores mais perfumadas do mundo. Agora as mãos tocavam-se e só conseguiam sentir a pele enregelada. Quando se deitavam nos cabelos e regressavam ao nariz em demanda do perfume de outrora, sobravam apenas uns dedos inodoros. E nem as carícias tardias, como se fossem o derradeiro frémito para os amantes se resgatarem do plano inclinado, traziam a sede que dantes lhes pedia água.
A impossibilidade dos sentimentos revolvia-se num sobressalto. Irremediável. Já não era um simples rumor que esvoaçava sobre as cabeças dos amantes, ou interrogações intimidadas com a segurança do que eles julgaram serem certezas. Os murmúrios foram ciciando a sua voz, cada vez mais audível, um ruído que consumia a quietude interior. Até esses sussurros serem o grito constante que desatou as incógnitas que, enfim, não se reprimiam à boca de cena. Era a vez das folhas frondosas, já sem a água que fora seu nutriente, amarelecerem e perderem-se no chão frio. Quando os pés se depararam com o chão inteiro de folhas ressequidas, e os olhos espreitaram sobre o dorso os ramos desnudados da árvore, tudo deixara de fazer sentido.
E o luto, o luto foi um breviário.

29.9.10

Um cálice à positividade da vida


In http://1.bp.blogspot.com/_Dl2PXMWDrOM/SKNyM8ewx3I/AAAAAAAAAII/SFtAtfRx0Vw/s400/brinde_alcool.jpg
Bem alto. Ergue-o bem alto, esse cálice onde repousa um qualquer néctar dos deuses. A sagração das coisas belas que há em todos os gestos, nas palavras, nos interstícios do espírito. Mesmo quando se escondem sob um denso manto de escuridão, quando parecem asfixiados pelo plúmbeo tecto de nuvens, ergue o cálice à positividade da vida que se encerra na sua simples existência.
De que serve toda a gravidade das coisas sérias? De que serve arrastar os olhos pelos lados mais esconsos, onde gravita a poluição da existência, o entulho que carrega a inútil melancolia? Qual é a serventia dos dias a fio em sorumbática pose, o sorriso emigrado para outras latitudes? Dedilha essa página amarelecida, a página com um insuportável odor a bafio, onde jaz uma camada de poeira que é a marca da inércia do muito tempo que encerra um património de prodigalidade do tempo. A seguir virão outras páginas, incertas como os dias vindouros. Encara-os de frente, como se fosses um destemido forcado que pega o touro de cernelha. Pega-o pelos cornos e, num arrebatamento em que escavas do fundo de ti as forças mais inesperadas, doma-o numa deslumbrante cambalhota.
Recusa os dias cambaleantes, os dias madraços em que vagueavas em errância com os olhos perdidos no chão imundo ou no horizonte tão cheio de nada. Fecha as janelas aos ventos que sopram a fuligem que macera, que a sitia nos lugares preenchidos pela sombria ferrugem. Os dias nascentes, os dias que se anunciam soalheiros, são o néctar servido no cálice que empunhas bem alto pela alvorada. As manhãs claras são uma precoce sagração do privilégio da existência. E descansa, que o devir não se demora.
Saboreia cada gole sorvido do cálice que festeja a imensidão da vida. Deita-te nos prazeres que celebram todas as alvoradas que jamais incorrem no menor desmerecimento. Que os pés não se arrastem na indiferença dos dias repetidos. Não há dias repetidos – eles não podem ser gravados na posteridade. Só há um dia de cada vez. E se, às vezes, um dia no seu ocaso parece um desperdício, mete a ideia na algibeira das coisas inconsequentes. Ao menos saberás que esse dia, esse aparente inútil dia, te trouxe a outro dia que tens o dever de pegar pela haste e dele fazer um dia enfeitado a ouro maciço.
Sobra o imperativo de seres o alquimista da existência. Convence-te: não é no exterior de ti que encontras os porquês aos enigmas que são uma angústia dilacerante. Revolve no mais fundo de ti, que no desafio da imperativa metamorfose encontras os vestígios, por mais ténues que sejam, que semeiam o perfume das flores todas. Torna-te no alquimista de ti mesmo. Quando por fim sorveres o cálice que festeja a grandiosidade da existência, verás, em retrospectiva, que os arrependimentos são um erro terrível.
Não, não cuides de abjurar o passado. Ele é imutável e nem merece a especulativa impossibilidade de ser refeito. Mas não te esqueças que os dias vindouros se tornam rarefeitos quando te debates contra as ondas alterosas que são as consumições dos tempos idos. Não há absurdo maior: consegues lobrigar maneira mais idiota de espezinhar o tempo presente, destroçando toda a positividade que o porvir tem para oferecer?

28.9.10

Fogo posto


In http://3.bp.blogspot.com/_JWe78m7UKn8/TDK6VhzApfI/AAAAAAAAAkc/np4M-P2RlhU/s1600/fogo_chamas_fogueira_1024x768_2.jpg
Quem é pirómano de si mesmo? Quem se autoflagela com a cerzidura incandescente da lava que escorrega, imparável? Ao alto e a baixo, teme-se pela demência (a pior das doenças) que se possa abater. E, no entanto, às vezes somos frugais no acarinhamento das fortunas que aterram à porta.
No vasto campo de flores que se prometia diante dos olhos, solta-se das mãos uma fagulha letal. Não é por distracção, nem por acto involuntário. Será falta de lucidez, ou os corredores interiores cansados de habitar num lugar imponente. As chamas tomam conta do campo de flores, uma a uma consumidas. Das flores já não se liberta o perfume inebriante, inigualável, pujante – um perfume que emprestava todas as cores à existência. A lenta consumição das flores deixa no ar a podridão de tudo e cinzas que são a morte esvoaçante. As faíscas deitam-se nos bolbos. Que resistem até onde podem. Oferecem a sua vitalidade, esgrimem a humidade interior para repelir as dantescas labaredas. A certa altura, a fragilidade toma conta de tudo. Os bolbos, o derradeiro bastião, inclinam-se à impiedade do incêndio que tudo consome com uma lentidão exasperante.
O pirómano não sai do lugar. Não é um voyeur altaneiro das suas cínicas acções. Fica embebido em gasolina, inerte no meio do campo de flores. Sem se amedrontar, na mais grotesca das exibições de demência lúcida. Olha em redor e vê o lento aproximar das chamas. Que, numa impressionante simetria, o cercam por todos os lados. Nem o ar putrefacto que se levanta, e tudo o que esse odor diz acerca da incandescência interior, desautoriza a inércia. Loucamente, possui-se de um veemência inusitada. Se pudesse, não derrotava a inércia; se ao menos se conseguisse desprender das férreas algemas que o amordaçam ao cepo bem no meio do campo de flores, tirava fogo de isqueiros e tochas para apressar a combustão.
O ar intoxicante contamina a lucidez. É como se estivesse embriagado, os sentidos todos trocados, a análise obscurecida pela mente trespassada. As primeiras cinzas caem sobre o rosto como se fossem a chuva que os índios cozinham nas suas mezinhas. Aquela chuva caridosa que limpa a alma pelas entranhas e remove todas as cáusticas poeiras que eram sedimento do tempo. Num lampejo de argúcia, apruma uma derradeira interrogação: aquele belo campo de flores prestes a desaparecer merecia ser extinto?
O pirómano de si mesmo acredita no contraponto da lucidez tardia. Acredita.  Que se incensa num processo indolor. E que as suas cinzas, aleatoriamente derramadas por onde calhar, terão pousio diferente. Já não lhe interessa adivinhar se será pousio melhor ou pousio pior. Os vários sítios onde as cinzas se reinventarem serão isso mesmo, novos campos de flores à espera de serem cultivados com a diligência que merecem. Os ventos tratarão de amansar a fúria dos elementos. E, quando sobrarem apenas as cinzas incandescentes, no restolho do incêndio que ficou com as forças exangues, a centelha há-de estar algures nas intimidadas cinzas que teimam em manter-se acordadas.
O fogo posto será uma terapêutica do tamanho do mundo. E esta confirmação: onde parece que há demência estão os vestígios da reinvenção. Nem que sejam ténues, uma frágil faúlha que a todo o momento se promete inanimado fogo fátuo. Quando for apenas cinza sem a luminescência escondida da chama sem pavio, estará completada a metamorfose.

27.9.10

Noivinhas de molho

In http://www.jblog.com.br/media/127/20090525-noivas.JPG
O rebuliço junto ao mar, a populaça a acotovelar-se na sua mirone condição. Um cachalote morto deu à costa? Um tardio veraneante indisposto, comido pelo mar? Uma raridade da natureza – uma estrela do mar gigante, ou um polvo descomunal – a bolçar agonia diante da audiência sordidamente voyeur?
Não. Uma mão cheia de noivas em pose fotográfica. Só havia noivas, os noivos misteriosamente ausentes. Um tango de uma perna só, portanto. As meninas ondeavam os longos brancos vestidos, metiam as mãos debaixo do cós do vestido para empurrar a longa, pesada cauda pelo areal. Andavam de um lado para o outro sempre solícitas às audíveis instruções dos fotógrafos. As extremidades dos vestidos perdiam a coloração branco pérola, enxertando-se da sujidade das areias molhadas por onde as caudas dos vestidos se arrastavam. Perdiam a virginal refulgência de outrora, os aparatosos vestidos.
O insólito rebuliço atraía mais gente. Já era uma multidão que tomava conta da embocadura do passeio marítimo em forma de cordão humano. As meninas noivas que não eram acolitadas pelos consortes continuavam na azáfama ditada pelos fotógrafos. Sempre com um sorriso de orelha a orelha, daqueles sorrisos que de tanto ver até cansam a retina. A para aí dúzia de donzelas não parava de cirandar no areal molhado pela maré que enchia. Os pés descalços subentendiam-se debaixo do que o longo vestido pouco deixava à mostra, quando iam pé ante pé na marcha árdua ditada pelo peso deitado sobre as caudas dos sumptuosos vestidos.
Uma onda mais atrevida molhou os calcanhares de duas noivinhas. O que deu outra ideia aos criativos fotógrafos. Uma fotografia em conjunto, as noivinhas de praia estendidas em duas filas – as mais altas lá atrás, as mais baixas curvadas sobre o dorso, todas com os pés enfiados dentro de água. Mal empregadinhos vestidos carotes a serem demolhados em água salgada. E nem a (adivinho) gélida água do mar nortenha furtava um esgar de desprazer. As estóicas noivinhas cumpriam a função com uma diligência homérica. Nem o peso dos vestidos em que estavam atafulhadas, nem a fúria das ondas na consumição final da preia-mar, ou a saudade dos noivos ausentes, furtava um segundo ao sorriso fotogénico que nascera com elas.
As algas que vinham na espuma das ondas emprestavam novas cores às molhadas extremidades dos vestidos. Já não era o dourado das areias molhadas a trespassar o imaculado branco pérola da ordem. À medida que maceravam no restolho da maré alta que se finava na entrada do areal, as caudas dos vestidos ganhavam uma tonalidade escura. Das cores que não auguram esperanças demoradas às noivinhas que se entregam às ilusões de um conto de fadas.
E o que seria dos noivos ausentes? A populaça olhava e olhava em redor, e nada dos noivos prometidos às joviais noivinhas. A populaça estranhava que os consortes não estivessem presentes na função. Um mirone interrogava-se se aquilo não era como as noivas de Santo António – esse rocambolesco casamento colectivo pago pelo edil de Lisboa – com a diferença da ausência dos consortes varões. Não tardou a desenganar-se. Meteu as pernas ao caminho, rabugento e mal encarado: homessa, lembra lá ao diabo que a dúzia de noivinhas andasse naquelas andanças e nem os noivos por perto. Maldito embuste. Afinal não havia noivinhos. 


Adenda: Descobri agora que isto tem a ver com isto.

24.9.10

Agridoce

In http://www.gscontroledepragas.com.br/site2/imagens/escorpiao03.jpg
Aquela fábula do sapo e do escorpião: um embuste pegado. Só dei conta depois de ter narrado a história de adormecer à minha filha (que meteu umas adaptações pelo meio).
Para quem não conhece a fábula: o traiçoeiro escorpião convence um sapo ingénuo a ser seu meio de transporte até à margem contrária através do rio. Consegue vencer a desconfiança do sapo, que, timorato, sabia da fama do escorpião. Talvez o medonho escorpião tivesse predicados hipnóticas. Só assim se entende que o sapo tenha ido na armadilha de oferecer o dorso para a outra margem. Ou o sapo, imerso numa imensa bondade, fazendo finca-pé à maldade genética do escorpião, acreditara nas boas intenções do farisaico bicho com o mortal veneno nas garras. À boleia do sapo, já quase com a outra margem à mão de semear, o escorpião não resistiu aos instintos sibilados desde a profundeza das entranhas. Espetou uma ferroada junto ao pescoço do sapo. O veneno letal demorou apenas uns segundos a fazer efeito. Consumido pelas dores lancinantes, o sapo afogou-se no rio. Levando com ele o escorpião que não sabia nadar.
No epílogo da história percebi o erro da escolha. A minha filha mostrava um esgar de choro, a sua inocência a chorar piedade pelo sapo que fora no engodo do escorpião desleal. Expliquei-lhe que a fábula encerrava uma lição (só não lhe disse que era uma lição de moral porque não a quero enganar precocemente com o impostura da moralidade). Era uma lição sobre a confiança. E sobre a importância de sabermos honrar a confiança que alguém em nós deposita. O escorpião assinava o papel do mau da fita, o poltrão imaginário que, por cima de toda a maldade irremediável, afogava a sua vida no meio dessa maldade que o levou, pela mão da ignorância, até à própria morte. Como podia ele não saber resistir aos seus instintos e aferroar mortalmente o sapo que nele confiara, se aquela mordedura era, ao mesmo tempo, a sua própria sentença de morte? Era a outra lição: quando atraiçoamos a confiança mostramos a nossa própria indignidade.
Isto de contar histórias a crianças para lhes trazer sono é uma ingrata tarefa. Ao ir pelos passos do socialmente convencionado somos atirados para o lodaçal da moralidade, da ética que perfuma as regras de uma saudável convivência entre as pessoas. Ora, eu tenho uma irresistível desconfiança desta moralidade e destas regras. Soa-me tudo a fingimento. Quantas vezes os seus maiores sacerdotes são os que, na escuridão do oculto, cometem os maiores atentados à retórica tão perfeita de que se acham zeladores? E a moralidade, supostamente um património colectivo, não devia ser um imperativo vertido só para dentro da personalidade de cada um?
A fábula do sapo e do escorpião é uma patranha completa. Haverá sapo tão ingénuo a confiar que um escorpião que lhe saltasse para o dorso seria capaz de resistir aos seus instintos? Haverá sapo algum que aceitasse dar boleia ao escorpião e, ao fazê-lo, assim encontrasse a sua derradeira viagem? E o escorpião: haverá algum, demente ao ponto de não reprimir os instintos mortais, espetando o hospedeiro sapo com o veneno letal – o veneno que, afinal, faria o escorpião vítima de si próprio?
Se estas fábulas que vêm das profundezas do imaginário popular têm alguma serventia, é a seguinte: elas não passam disso mesmo, do imaginário de um povo fantasista, um imaginário que perde todo o contacto com o pragmatismo. Talvez a única serventia seja a de vacinar as criancinhas contra a maldade genética da espécie humana. Fermentando um instinto de desconfiança. Eu digo que estas fábulas são o prelúdio para uma existência niilista.

23.9.10

Palavras vestidas do avesso


In http://www.solopsicologia.com/wp-content/uploads/tratamiento-de-la-mitomania.jpg
A suprema maldade: puxar lustro à erudição só para desencantar palavras raras que são sinónimos de outras palavras já gastas. Dizem-me: serve para apoucar gente amiga da agnosia (lá vai uma, do avesso). Apanham com o restolho das ofensas que irrompem engalanadas com palavras jamais ouvidas. Como o que por aí sobra é preguiça, o dicionário continua com as folhas fechadas, não vá a poeira sedimentada levantar-se num incomodativo arfar.
Podes, por exemplo, chamar mitómano a alguém. Não te esqueças de compor o tom de voz. Evita a voz agressiva, ou a outra pessoa desconfia do sentido da palavra que, por orgulho, não ousa interrogar-te acerca do seu significado. Que isto é sublime ironia, dirigir as desagradáveis palavras com uma amigável entoação de voz, se possível com um sorriso nos lábios, embrulhando o ultraje num venenoso papel de cordialidade. Dizem-me: que não há maior recompensa para o deleite interior.
O outro há-de suspeitar que um mitómano é um homem que adora mitos. Isto empurra para a filosofia – que o interlocutor tem uma vaga recordação de ter andado a estudar na escola a inutilidade do mito na disciplina de filosofia. Vai puxar os galões. Afinal não é o brutamontes, o prócere da escassez de massa cinzenta. Ali à frente, alguém esboça um simpático elogio às suas, por ele, desconhecidas capacidades intelectuais. Mas é tudo no seu contrário. Mitómano – é a palavra vestida do avesso, porque a entoação sugere um caleidoscópio agradável. Tresler o significado de mitómano é a grotesca exibição do apedeutismo que o abocanha (eis outra palavra vestida do avesso: apedeutismo).
E, no entanto, pôr um vestido diferente numa palavra não há-de ser manifestação de sabedoria. Será sobranceria, ostentação intelectual, hipocrisia, maldade. Os eruditos, talvez por pensarem que têm punhos de renda e se acovardam quando alguém lhes mostra um punho fechado, desviam-se das estradas por onde passeia a franqueza. Escondem-se detrás das palavras travestidas – as palavras que sofisticam outras de sentido vulgar, deixando os interlocutores esmagados pela falta de conhecimento. Se estes não quiserem dar parte de fraco (o maldito orgulho que agiganta a necedade – e vai mais outra do avesso), ou se a preguiça repudiar a consulta de um dicionário, destapa-se o pior dos dois mundos. A ofensa, a insuportável ofensa, acovardada no véu da erudição sobranceira.
Um dia destes li um comentador a acusar o primeiro-ministro de ser mitómano. E, ou muito desconfio, ou sua excelência, com a consabida escassez de tempo para se debruçar sobre minudências, não perguntou ao dicionário o que ele mandava dizer sobre a palavra. Um pressuroso conselheiro terá arriscado a função, deitando sua excelência numa depressão de quem se adoenta quando alguém, tão narcísico, se sente aviltado? Ou nenhum membro do séquito terá explicado o sentido da palavra, para evitar as más disposições que indispõem qualquer um? Sua excelência terá metido a cabeça ao travesseiro convencido que mitómano é elogio. E não me admirava que o admitisse mesmo que chegasse a travar conhecimento com o significado de mitómano.
De outras vezes, é a fonética que atraiçoa o sentido das palavras atamancadas numa frase. Palavras com sons parecidos – mas apenas com essa parecença, que tanto diferem no significado. Um dia destes, já não sei a que propósito (tenho que me resguardar...), usei a palavra “lascívia” numa sala de aula. Juro que conduzia o discurso por metáforas para reforçar o entendimento dos alunos; não era esbulho de nada. Fizeram um esgar de estranheza. Umas horas mais tarde, ao reentrar mentalmente naquele episódio, suspeitei que a audiência tinha confundido, pela semelhança fonética, “lascívia” com “lixívia”. 
Ah, as traiçoeiras palavras, que se adulteram quando trazem a roupa do avesso.

22.9.10

Os remorsos


In http://www.psychologytoday.com/files/u45/guilt.jpg
Os remorsos são uma consumição. Entram pelos poros da consciência. São como balas penetrantes que ficam a corroer os interstícios da memória. Estão sempre acirrados. Dentes de leão cravados na carne, uma ferida que nunca chega a fazer-se cicatriz. Os remorsos são o maior sofrimento do envelhecimento. Remoem as entranhas, fazem as úlceras e fabricam as células envenenadas que acabam por arruinar o corpo. Estão lá, indeléveis, enfeitando o quadro das memórias com cores desagradáveis.
Não transigem com o arrependimento. Não há maneira de apagar os actos cometidos, os actos que transitam no tempo póstumo através da excruciante dor da culpa. Essa culpa transida, que amarrota a existência e semeia uma angústia insuportável. O caudal que transporta os remorsos é um constante rumorejar nos recantos mais escondidos do conhecimento. Cicia os segredos que nem as profundezas da intimidade queriam recordar. Arrependimento algum aniquila a culpa. Ela tremula, bem alta, no mais alto do mastro que pontua o caminho do desassossego.
E essa culpa, essa tão profunda a interna culpa, é o miradouro de onde se avista toda uma incapacidade. Lá do alto do miradouro, patente a demissão dos actos respeitáveis. A própria existência parece ter perdido o rasto da decência. Da decência como vem nos manuais dos bons costumes. A certa altura, emerge uma pulsão para derrotar os remorsos. O corpo entrega-se a uma interna batalha de dois hemisférios. Um recorda a pungência da culpa, atirando-se a uma introspecção que grita constantemente o rumor lânguido dos remorsos incendiários. O outro é um titânico esforço para dobrar a página. Para seguir em frente com a franqueza de quem não desmente os tempos idos que apascentam a interior desonra sem disso fazer perene sentença que amesquinha todo um porvir à espera.
É nesta confluência de antípodas comportamentais que, em demanda do manancial de uma existência diferente, a sede de asfixiar a tórrida lava vulcânica dos remorsos esboça um estado de negação. As veias mudam-se para alimentar o esquecimento. Ou adulteram-se para que a própria essência do ser transija com os actos reprováveis. As culpas interiores diluem-se na projecção do ser para o exterior. Se ele há tanto cometido pelos outros, se a relatividade das sentenças que ajuízam os actos diminui o opróbrio lançado pelos outros, por que não haveriam os remorsos de morrer diluídos na transmutação do ser?
De nada adianta a eterna peregrinação de um corpo que se arrasta cheio de chagas, dobrado pelo peso dos remorsos. Pode ser a tanta exigência interior que aquece a água que recebe a fervura dos remorsos. Mas não nos ensinam que a perfeição é a negação da humanidade? Já sobram as dores que consomem as veias num incêndio sibilante, a vergonha interior que obriga a resguardar os arrependimentos do conhecimento alheio (mesmo dos que são mais próximos). Prolongar o padecimento na voluntária entrega à culpa, como se essa entrega fosse o nutriente para apagar da lembrança os actos execráveis, é um embuste do tamanho do mundo. Não é solução para coisa alguma. Tudo o que os remorsos conseguem é abrir a janela aos abutres que adejam, ameaçadores, à espera que o corpo desista.
Quem inventou a culpa que fica a pesar eternamente na lucidez do pensamento devia ser privado do seu lugar na história da humanidade. 

21.9.10

A direita que aferroa


In http://www.bulldog-breed.com/wp-content/uploads/2009/12/bulldog1.jpg
Quando uma certa direita descamba para o populismo barato: ele é o referendo sobre questões de segurança, ele é a água benta às deportações de ciganos ordenadas pelo companheiro Sarkozy, ele é a exortação para fiscalizar as lojas chinesas como via de combater a “concorrência desleal”. Estes são os cartoes de visita de Paulo Portas e do actual CDS-PP, no seu esplendor populista.
E depois olhamos para o lado de lá, por onde há as esquerdas variadas, e há quem veja naquele partido o bastião da extrema-direita. Não é que não seja intrigante que as luminárias esquerdistas se esqueçam do genuíno partido da extrema-direita – o PND – pois este não chega a fazer cócegas eleitorais. Quando muito incomoda quando aparece nos jornais ou nas televisões a destilar saudades da ditadura que fomos há não muito tempo. O problema desta direita conservadora e que frequentemente escorrega para um populismo conveniente (porque arregimenta votos entre gente atamancada na sua pequenez mental) é que, com causas destas, põe-se a jeito do rótulo que não gosta: “extrema-direita”.
Eu acho que não. Num contínuo que vai de uma extremidade à outra da paisagem política, o lugar é ocupado pelo sinistro PND. É evidente que os partidos que repartem a esquerda e a extrema-esquerda apreciam a conotação e encostam os democratas-cristãos (ou conservadores, ou populistas – depende dos dias e dos humores) à extrema-direita. Diria que é de uma conveniência táctica: ou para retirar eleitorado ao CDS-PP, ou para o enquistar a franjas pouco recomendáveis, os saudosistas do passado salazarento. E o pior é que os estrategas (ou Portas em pessoa – a hipótese mais provável) voluntariamente se entregam ao anátema pespegado pelas esquerdas e extremas-esquerdas, caindo que nem anjinhos. Das duas, uma: ou a ideia não é incomodativa para Portas e seguidores, ou a ingenuidade abunda lá pela sede do partido. Se a primeira hipótese se confirmar, temo que a extrema-esquerda esteja coberta de razão quando coloca o CDS-PP na extremidade que está nos antípodas da sua própria extremidade.
Acostumei-me a chamar a esta direita a “direita conservadora” (ou “direita de sacristia”, ou “direita bafienta”). As bandeiras recentes que escolheram como prova de vida destapam um qualificativo alternativo: a direita bulldog. A do pulso forte. Devem ter lido sofisticadas análises sociológicas que identificam a propensão da maioria para a governação com mão de ferro. Há ali um complexo de Édipo mal resolvido – Salazar a figurar no papel de Édipo. O exagero vai ao ponto de haver votantes (socialistas e não socialistas) do socialista primeiro-ministro que lhe gabam o mesmo atributo, quando o homem, coitado, metido nas setes varas das suas limitações intelectuais, confunde autoridade com autoritarismo.
É nestas alturas que desconfio que ainda não amadurecemos, enfiados num atavismo civilizacional. Se o povo gosta de chicote (de dar e receber), certos políticos engenhosamente pegam na plasticina das propostas e fazem a vontade ao soberano povo. Se o povo quer castigos aos meliantes, referende-se a mal-amada justiça para a tornar mais punitiva. Se Sarkozy decidiu que os ciganos fazem mal à sempre grandiosa França, empunhem-se solidariedades partidárias, nem que através delas ecoem do passado purgas étnicas que deram tão mau resultado. E como o povinho detesta os chineses e desconfia do furor das respectivas lojas, persigam-se os comerciantes chineses, nem que seja uma perseguição que tresanda a cirurgia étnica.
E eu que me sei de direita, sinto uma profunda vergonha desta direita tacanha. O mal está na alergia que temos aos valores liberais. Se não, uma direita liberal já se tinha aqui erguido.

20.9.10

Utilização do corpo


In http://www.realbollywood.com/news/up_images/sofia-vergara4012.jpg
(Aviso: texto eventualmente chocante para feministas e católicos bem formados)
Mandam as convenções (e os dogmas da educação habitual): as senhoras que atingem certos fins dando o corpo como penhor são olhadas de soslaio, atiçadas com o labéu da profissão mais antiga do mundo. Desprezadas pela ofensa aos cânones da moralidade acertada. Talvez isto seja o produto das sobras da moralidade cristã. Ou do sexo mal parido e das tormentas interiores que assaltam muitos zeladores dessa moralidade, que às vezes, para surpresa de alguns, acabam apanhados na armadilha que tanto desaprovam.
Ontem esbarrei numa desassombrada confissão de uma actriz. A menina chama-se Sofia Vergara e confessou que os seus seios avantajados lhe proporcionaram uma vantagem comparativa na progressão da carreira. Só não disse como, mas os que de nós temos uma mente que a espaços descamba para a perversão imaginamos como. Não se tirem daqui conclusões precipitadas, todavia. As palavras anteriores não contêm o qualquer laivo de censura. Ou a sugestão de que nessas palavras está implícita a ideia de que a actriz é uma pouco aconselhável rameira.
Primeiro: enoja-me esta pressão social que colectivizou a moralidade. Daí à profusão de sacerdotes que ajuízam as acções dos outros, debitando sentenças acerca da sua conformidade com os padrões de que eles se julgam vigilantes, é um breve passo. A ética devia ser um domínio reservado ao íntimo de cada um. À consciência individual. A cada tentativa de intrusão dos outros como julgadores da moralidade das acções de alguém devia corresponder uma veemente reprovação, o isolamento dos que se julgam colocados numa posição superior para julgar as acções dos outros.
Segundo: o pragmatismo da contemporaneidade é o palco de onde se devem fazer as observações. Acho pouco coerente que tanta gente aceite o utilitarismo como modo de vida, aquela forma muito “José Mourinho” de apenas olhar para os fins sem dar grande importância aos meios usados, e depois se atirem furiosamente a alguém que ponha em prática esse modo de vida usando o lindo corpinho que a natureza lhe proporcionou.
Porventura serão as concorrentes de tais meninas com prodigalidade corporal que mais depressa censuram quem usa o corpo para chegar mais longe. Compreende-se. São penalizadas por uma desvantagem comparativa, não conseguem despertar a cobiça junto da homenzarrada que se deixa cegar pela excitação das hormonas ferventes. Ficam para trás, vítimas de uma profunda injustiça. Protestam contra outra propriedade do mundo de hoje: não é pelo mérito que se consegue vingar, são outros os atributos que contam. É o mundo como ele é.
É fácil tirar a pinta dos que reprovam esta maneira de subir na carreira. Ou são as concorrentes que não foram agraciadas pela natureza, mortificadas pela timidez curvilínea. Ou são as senhoras que alguma vez foram vítimas destas beldades, vítimas através do colapso da infidelidade. Ou trata-se de homenzarrada que destila outra espécie de inveja – a daqueles que nunca estiveram em posição de terem em bandeja uma lasciva mulher em oferenda dos deuses. Ou, por fim, são os habituais penhores da moralidade alheia. Mas, neste caso, importa dar o devido desconto pela razões já explicadas.
O corpo é propriedade privada. O que fazemos com ele apenas diz respeito a cada um de nós. E à respectiva consciência que é, se ainda não demos conta, um domínio que pertence à individualidade. Era o que mais faltava, colectivizar a consciência individual. Nem os marxistas foram tão longe. E se há donzelas que escolhem a “promiscuidade” (assim mesmo, entre aspas), é porque se trata de um negócio – como chamam os juristas – sinalagmático. Como se pode censurar tamanha generosidade?

17.9.10

Pusilânime


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(À L.)
Urgiam decisões fortes, decisões que convocavam coragem. Urdia todos os passos necessários. Planos traçados em estiradores e com instrumentos de precisão milimétrica. Era capaz de adivinhar esgares, palavras em revoada, silêncios sintomáticos. Até era capaz de prever os efeitos. Só que os movimentos eram tomados pela inércia no exacto momento em que a acção se convencera do seu império. Poltrão, mergulhava nos devaneios interiores onde pontificavam pensamentos em efervescência.
Os sinais enviados pela súbita paralisia da acção eram toda a sua ambiguidade. Era como se por dentro o sangue cavalgasse em sobressalto, de um lado para o outro a incendiar as veias, algum desse sangue em tormentoso caudal esbarrando noutro sangue vindo do lado contrário. Emparedado entre a urgência da acção e a inércia a vingar no derradeiro instante, diante dos olhos deitava-se uma nebulosa densa. Estava destinado a navegar por estima entre a bruma que locupletava a visão. Numa tremenda errância, o corpo aos trambolhões, encamisado nos apertados corredores do turbilhão a que se dera.
Queria saber o significado da pusilanimidade. As suas causas. O impulso que vinha de dentro e convocava à acção urgente representava uma coisa; mas o seu oposto estava encerrado na mais elevada pulsão que impedia os movimentos. Era mais o tempo em que o pensamento se atirava à necessidade de agir. O raciocínio articulava-se nesse sentido. A racionalidade furtava-se à tempestade emocional e alinhavava uns fragmentos que pacientemente desaguavam num plano. O plano que ditava a irremediável acção. Mas depois havia uma esquina dobrada no pensamento. E o pensamento acovardava-se. Os projectos que a racionalidade ensaiara cediam num qualquer altar a que faltava determinar o sentido.
O correr do tempo – lento na ocasião; e como ele é implacavelmente lento quando devia voar depressa – hipotecava a acção reclamada. Porventura a impecável racionalidade que compusera o imperativo da acção era a sua própria traição, afinal longe de ser impecável como era julgada. Interrogava-se: o ânimo fraco de que se julgava tomado não era a contraprova da racionalidade? Ou uma racionalidade de sinal contrário, não uma qualquer covardia que impedia a acção antes julgada urgente. E talvez não houvesse covardia nenhuma só por vir de mão dada com a inércia.
Do pensamento em efervescente turbilhão, atirando-se constantemente para os seus opostos, uma lucidez irrompera no momento derradeiro. Afinal não havia necessidade de acção – pelo menos daquela acção que reclamava uma radicalidade tempestuosa, um autêntico terramoto interior. As vidas atravessam os seus críticos momentos. É quando se exige a introspecção que transita o pensamento em profunda redescoberta interior. Podem até encontrar-se inúmeras incapacidades, ou palavras que tenham fermentado a perplexidade, ou um mar de dúvidas existenciais. Saiba o pensamento saldar-se por alguma lucidez, por uma lucidez que seja.
A reflexão consentida, quando já vem depurada do travo de emocionalidade, tem uma magnífica aptidão: descobre resultados que eram desmentidos pelo anterior pensamento imerso em profunda tempestade cerebral. Não há ânimo fraco, ou covardia, quando tudo se congeminava para a urgência da acção e, mesmo à boca de cena, a acção colapsa. A meio do turbilhão de opostos, um acaba por se sobrepor. O que sobra é o sentido da opção que vingou. Não interessa que a inércia tenha derrotado a acção que era convocada com a urgência da véspera do fim do mundo.
O que interessa é perceber porque ela se sobrepôs. E, no fim de contas, o que se julgava inércia pode ser a acção mais sensata.

16.9.10

De que serve uma alma penada?


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Sabes lá tu, tristes as figuras que desvelas enquanto arrastas os ossos na penúria das desgraças que desabam sobre ti. Ou das desgraças cujos efeitos amplificas só para fermentar a comiseração dos outros. Deitas-te no leito onde são tristonhos os lençóis, encardidos pelos desaires que tomam posse de ti. Sem dares conta como essa voracidade te consome. É uma espiral irremediável: quanto mais fundo mergulhas na demanda da melancolia, mais te aprisionas nas masmorras onde estão escondidas todas as almas penadas.
Não pode ser: não há existência apenas cunhada pelas adversidades. Tem que haver, por uns instantes que seja, uns lampejos de felicidade, um tímido sorriso ou uma sonora gargalhada, um dia em que os teus olhos entendem tudo em redor como uma luminosa coincidência de harmonia. Os outros com quem te cruzas, os desconhecidos de todos os lados, não são, por definição, gente pouco recomendável. De que serve desconfiares das palavras ditas pelos outros, ensaboares a pérfida hermenêutica de palavras e gestos como se neles houvesse sempre um segundo, um terceiro ou um quarto sentidos em intenções escondidas? Olha para os cemitérios. É neles que encontras a mais sublime lição da existência. Detém-te, por algum tempo, em volta das sepulturas que acomodam os ossos dos que perderam o privilégio da vida. E aprende.
Às vezes, confunde-se a causa e a consequência. Já nem tu sabes se a prepotência da alma penada em ti aconchega a visão cinzenta de tudo em redor. Ou se é o contrário: se mergulhas num infindável rol de adversidades porque teimas em pintar o mundo com um negro carregado. O que é evidente é o rosto sombrio, o ar psicologicamente extenuado que trazes contigo, as palavras trespassadas pela sensaboria. Em suma, tornaste-te uma pessoa feia e enfadonha. Outra vez uma dúvida existencial: és assim pela nutrida lista de desgraças que já te afligiram ou, por assim seres, és um poderoso íman que atrai mais contratempos? A voragem das tristezas empurra os ossos para uma pré-sepultura, como se a existência fosse um prenúncio da fatalidade que às vezes julgas que se demora em ti.
Parece que a propensão para alma penada é uma defesa. Achas que o ar compungido convoca a piedade alheia. A simples ideia de que isso possa acontecer tranquiliza o espírito. O que não te é dado a perceber é que o genuíno acarinhamento não é aquele que se filia na compaixão. Devias perceber que essa generosidade esconde um alçapão profundo. Quase sempre, as pessoas destapam o seu generoso manto de piedade como meio de se livrarem das interiores dores de consciência. Não ajudam quem pede a esmola dessa ajuda; ajudam-se a si mesmas.
Reivindicares a inditosa peregrinação pela vida é aviltante. Ate poderá haver infaustos acontecimentos que enegrecem episódios da existência. E até que alguns desses episódios deixem cicatrizes que custam a sarar. Prolongar as dores interiores até à eternidade é a maior ofensa à grandeza da vida. Outra vez, não te esqueças daqueles que já moram nos cemitérios. Não te esqueças de como eles te invejariam caso lhes fosse dada a oportunidade de se pronunciarem sobre as tuas interiores moléstias. A cada dia que passe sem te livrares da alma penada que tomou conta de ti, embrulhas-te num lamentável amesquinhamento de ti mesmo.
Existe pior doença do que a maceração voluntária do ser?


15.9.10

Collective Soul, "Shine"

Tinta da China


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O fio de tinta aveludado que escorre no papel é um segredo, um mistério sem explicação. O olhar estreita-se, deita-se sobre o papel que se encharca com a tinta negra vomitada pela ponta da caneta. Como se fosse um microscópio em científica função. Jurara, esse meticuloso olhar, que o lento débito de tinta era o espelho da alma que se expunha em forma de texto.
A tinta da China enfeitava as letras que deslizavam na folha de papel. Pela sua forma de veludo, aquelas palavras ganhavam espessura poética. Não era como a escrita maquinal no computador, o eco surdo das teclas percutidas à medida que as palavras se apinhavam no ecrã branco. A tinta macia conferia sofisticação e magia às palavras que assim cristalizavam uma grandeza ímpar.
Não maquinal, antes meticulosa, a escrita já esquecida esbarrava em perigosas demandas. A maneira heterodoxa com que pegava na caneta era a adversidade maior à limpeza do texto que aparecia na folha de papel. O dedo polegar e o dedo indicador esmagavam a caneta, como se a fúria com que as palavras surgiam a isso obrigasse, levando o dorso da mão a varrer a folha de papel. Se as linhas não viessem espaçadas, o texto ficava esborratado pelo arrastar do dorso da mão nas linhas acabadas de preencher pela tinta da China. Ao menor sinal de borrão, a inspiração emigrava. Os olhos lamentavam as palavras vitimadas pela mão que se arrastava em cima do papel.
Debatia-se, o olhar, nos borrões exclamados, como se eles fossem o sinal de uma heresia dos sentimentos que povoavam as entranhas. A escrita perdia-se nas intermitências da distracção. A cabeça pousava no papel e fitava as palavras no sentido oblíquo, matizando as nódoas que se agigantavam em perspectiva no sentido do olhar desiludido. As ideias que confluíam em tempestade cerebral amansavam-se na distracção das manchas que, a certa altura, retiravam sentido às palavras já esboçadas. Outros pensamentos vogavam, em trânsito para terrenos diferentes. O texto interrompido perdera o fio à meada. Já não seria retomado.
O apuro estético da tinta da China tropeçava na pessoal incapacidade para o seu uso. Às vezes, de tanto querer era atraiçoado por não poder. Preso às ambiguidades da ineptidão corporal, esfumava-se uma veia que sentia latejar quando usava a apetecível tinta da China. Quanto mais insistisse, mais as palavras esborratadas pontuavam a decepção dos textos que abortavam à boca de cena da impotência funcional. A impossibilidade da tinta da China determinava a inércia da inspiração. Era como se uma venda embargasse a veia poética que julgava fluir pela entranhas.
E, todavia, não se culpava. Endossava as culpas para a incapacidade da ciência. Os cientistas já deviam ter inventado tinta da China que secasse assim que saísse do bico da caneta. Por mais que procurasse a redenção através da letra de forma providenciada pela escrita no computador, por mais que experimentasse diferentes fontes, ajuizava um resultado fracassado ao reler os textos dias depois. Era como o efeito da tinta da China sujada pela mão desastrada. Quando retomava textos com a distância do tempo, os olhos eram atraiçoados pela forma obtusa das palavras amontoadas. Tal como se as visse através dos borrões formados na tinta da China agredida pelo dorso da mão.

14.9.10

O couraçado


In http://www.eternos.org/wp-content/uploads/2007/11/granito.jpg
Espúrios heroísmos. A arcada toda petrificada, um mastodonte que ampara as intempéries todas. Com a mesma insensibilidade que troveja medo sobre as vicissitudes que pairam, tão temíveis. Não há ondas alterosas que abram cicatrizes naquela parede densa. Não há vendavais que mexam as telhas, um milímetro que seja. Não mostra comoções, as lágrimas arredias como chuva no meio de um deserto ávido de água.
E teima e teima em mostrar as suas muralhas de aço. As cortinas também são de aço. Como os nervos. Tudo é feito em aço, matéria inexpugnável, um bazar onde se acomodam as insondáveis emoções invisíveis aos olhos alheios. Ancoradouro onde outras lágrimas se vêem verter. Veste a mortalha dos duros para enxugar as lágrimas dos outros. Como se fosse o lugar onde se amontoa o ferro-velho, o que já ninguém quer, as inutilidades que se apinham em caótica ordenação. Julga-se à medida de um generoso regaço onde repousam variadas espécies de inditosos. Esse regaço, um bálsamo que alivia infortúnios. Mas há uma transferência das desgraças. Elas são depuradas debaixo da mortalha de aço, reduzidas ao seu insignificante pó. 
E, todavia, as emoções volteiam-se num frémito explosivo por dentro das veias. As emoções próprias e o restolho das emoções alheias que ali chegam para terapêutica liquidação. Irrompem em direcção à superfície, onde a mortalha as reprime. Voltam a descer, a sedimentar-se na profundeza das entranhas. É lá a sua casa, transidas pela manipulação asfixiante. Nota-se que o chão oscila, quase imperceptível, ao passar dos pés. Um dia, e outro, e outros mais. O que provoca estranheza. Julgara-se que aqueles alicerces, sólidos como engenharia alguma pudera conceber, fossem o arpão da máxima estabilidade. Mas o chão tremia. Dir-se-ia que só instrumentos de precisão conseguiam medir os movimentos telúricos. Mas eles sentiam-se. Levantavam dúvidas. Seria o couraçado o couraçado que se fizera notar?
Um dia, como se fosse um vulcão a despertar da sua agonia, as águas recalcadas no leito pantanoso entraram em ebulição. Ao início, só um suave borbulhar acompanhado de vapores que sinalizavam o aquecimento das águas. De repente, parecia que o chão das águas era um mar revolto, um manto que subia e descia com furiosa intensidade. Houvera uma ruptura, uma minúscula ruptura, por onde entrara um intruso que desmanchara a lividez do couraçado. Como crescia a paradoxal fragilidade do majestoso amontoado metálico! De um momento para o outro, os rebites despertavam-se, prenunciando a fatal fragilidade do mastodonte.
À deriva, errando à mercê dos tempestuosos ventos que sopravam de todos os lados da rosa-dos-ventos, metia água pelo porão, pelas escotilhas, era às pazadas a água já não forasteira que arremetia pelo convés. O que outrora ninguém ousara desconfiar era agora uma excruciante interrogação: o couraçado não era indestrutível? Teve as emoções bem resguardadas por detrás da epiderme grossa e (julgava-se) impenetrável. Quando ficou ao deus dará, até uma casquinha de noz parecia mais sólida do que o errático couraçado. O pior, é que estava longe da costa, entregue aos caprichos de uma impetuosa tempestade em alto mar. As forças, já exangues, não ajudavam a contrariar a imoderada tormenta. Sentia que o fundo do mar o tragava com uma agónica lentidão.
Arrependera-se, naqueles instantes fatais, da teimosa heroicidade que se auto-impusera. De que lhe valera? Só a efemeridade do regaço para as desgraças amputadas por depuração. E quem lhe valia na desdita, agora que uma enxurrada de água desordenada tinha esbarrado, e com tanto fragor, no metálico casco que parecia feito de papel vegetal?

13.9.10

A educação sexual também é para os progenitores


In http://i41.tinypic.com/k1atyf.jpg
Hesitei um bocado antes de escrever sobre isto. É o risco de apanhar com o rótulo de conservador bafiento quando se cai em cima das vanguardistas modas da nova pedagogia. Nunca sabemos se estes vanguardistas apenas são inconsequentes experimentalistas, ou se arrepiam caminho a novas pedagogias que se hão-de enquistar com naturalidade. Ora, se for isto a acontecer, os que ao tempo do lançamento da revolução pedagógica se atirarem a ela não só vão ser desmentidos pelo futuro como não se livram da trela do conservadorismo. Alguns não se importam de carregar a trela. Como não é dor que me apeteça, ficam entendidas as hesitações.
Eis o contexto: ontem, no Público, notícia sobre as aulas de educação sexual que são obrigatórias a partir de hoje. Quero dizer que sou contra, mas por razões diferentes das que motivam a alergia de movimentos carregadinhos de conservadorismo de sacristia. Se estes deploram a sexualidade – ó coisa pecaminosa! – como podem tolerar que o ensino de assuntos relacionados com a sexualidade venha para os bancos da escola? Eu (acho que) tenho uma mente mais arejada. A diferença é que considero que tais assuntos devem pertencer à coutada educativa de cada família. Podem-me dizer que há famílias que não estão preparadas para educar a prole neste assunto. Em alguns casos, os tabus da ancestral educação católica são o travão para conversas descomplexadas entre pais e filhos. O que, na peregrina visão dos fazedores da sociedade sem peias, é motivo para trazer o tema para os currículos escolares.
Só depois é que vinha a fatia deliciosa da notícia: nalgumas escolas, talvez mais propensas ao experimentalismo, os progenitores são convidados ao envolvimento nas aulas de educação sexual. Posso escorregar para um inadvertido conservadorismo, mas esta insólita comunhão pedagógica é uma orgia potencial. Já sei que, a páginas tantas, me dirão que semelhante ilação só pode ser esboçada por alguém com uma mente pervertida. Que se eu lesse a notícia até ao fim, se soubesse do que tratam as aulas de educação sexual, não tirava conclusões precipitadas. Conclusões ainda por cima infectadas pela dissolução que parece ter colonizado a mente.
O experimentalismo é comovente. No fundo, o que devia ficar reservado à intimidade das relações filiais é socializado através das escolas. E não foi para isso que as escolas foram pensadas? – perguntarão os engenheiros sociais, os que acham que a escola enxerta os alicerces do “pensamento como deve ser” nos petizes.
Para não retirar razão aos que diriam que tenho uma dissoluta mente, lá vai disto: vai ser uma bela experiência, os progenitores entretidos em teatralizações que ilustram o assunto (foi narrado na notícia), talvez como prelúdio para outras experiências extraconjugais no rescaldo das actividades escolares. Ou de como as aulas de educação sexual podem espicaçar o swinging. Até pode acontecer que alguns progenitores, por assim dizer mais atadinhos no assunto, aprendam algo da poda ao participarem nas actividades. Vai ser uma magnífica comunhão intergeracional e a falência do promissor negócio dos consultores matrimoniais.
Falta saber qual foi o critério de recrutamento dos professores da disciplina. Eu cá tenho a impressão que o critério de desempate é a desinibição, porventura uma certa lascívia a transpirar dos poros, pessoas desempoeiradas, que empurraram há muito, e para bem longe, os preconceitos castradores. Senão, estas comunhões intergeracionais de experimentalismo pedagógico serão um fracasso.

10.9.10

E se o camarada Fidel estiver surpreendentemente lúcido?


In http://www.freakingnews.com/pictures/37500/Fidel-Castro-and-Marilyn-Monroe-37710.jpg
dias duvidei – como, aliás, sempre duvidei – da lucidez do senescente camarada Fidel. Foi quando ele descobriu que Bin Laden, apesar de ser o terrorista mais procurado pelos serviços secretos dos Estados Unidos, está a soldo deste país. Hoje vou desmentir o mau diagnóstico anterior. É que o camarada Fidel deu uma entrevista onde confessou a falência do modelo comunista. Teve a honestidade de afirmar que não era um modelo exportável para outros países porque nem sequer tinha dado provas em Cuba.
Não posso fugir a um imperativo prelúdio: o que se segue pode soar a desonestidade intelectual. Se há dias pus em causa a sanidade mental do ex-que-ainda-pensa-que-é-líder-cubano quando inventou aquela fantasiosa teoria da conspiração, hoje aplaudo a coragem de ter, por fim, conseguido proferir palavras sensatas. Pelo menos para os meus gostos pessoais. Daí que não consiga resistir a ovacionar Fidel – lá haveria de vir a primeira vez. Ora tudo isto leva a reconhecer que a mudança de opinião sobre a sanidade mental do camarada cubano vem a reboque das conveniências pessoais. É deste Fidel que eu gosto.
Imagino o dia atormentado que os camaradas comunistas passaram quando esbarraram nas contundentes declarações do seu ícone. Adivinho a primeira reacção: isto não passava de uma farsa montada pela comunicação social imperialista. Só podia ser uma dessas maquiavélicas distorções de que só os capitalistas são capazes, isolando uma frase do contexto para pôr o camarada Fidel a renegar todo o passado em que foi protagonista e, pior que isso, a renegar um valioso ingrediente do património genético do comunismo. Sacanas dos capitalistas e protofascistas, que não perdem uma ocasião para denegrir a religião comunista.
À medida que os detalhes iam sendo conhecidos, os camaradas mais teimosos persistiam na intransigência: o camarada Fidel não quis dizer o que se propala aos quatro ventos (para gáudio de todos os fascistas – ou seja, de todos que não sejam comunistas ou, pelo menos, de uma esquerda qualquer). Outros apóstolos da doutrina, sem estarem tão cegos pelas vendas dogmáticas, foram ao encontro desta reacção: Fidel até pode ter afirmado o que afirmou, mas não é para ser levado a sério. Um comunista a sério nunca renega a doutrina. E Fidel está doente. Talvez a doença retire discernimento. Portanto, desvalorizem-se aquelas declarações tão a preceito de todos os inimigos do comunismo (e são tantos).
O que me regalava a existência é que o camarada Fidel estivesse fino que nem um cacho de uvas a jeito da vindima. Era como se o papa celebrasse uma homilia especial só para anunciar que deus não existe. Bom de mais para acreditar. Continuo a ter para mim que o camarada Fidel nunca bateu bem da cabeça. Não é agora, mirrado pela doença terminal, que de repente os circuitos internos passaram a funcionar de maneira exemplar. O Fidel que há dias revelou ao mundo a identidade secreta de Bin Laden não é o mesmo Fidel que ontem sentenciou a morte do comunismo. Temos que juntar a esquizofrenia aos padecimentos actuais que consomem o ditador. (Ia a colocar “ex-ditador”; porém, um ditador nunca perde a condição, mesmo quando já não tem o poder nas mãos.) Ou é Alzheimer, por causa desta súbita variação de personalidade (reforçada pelo dedo apontado ao Irão por ter um paupérrimo arsenal nuclear).
Da dúvida não nos livramos: qual é o Fidel que vale, qual é o que está com alguma lucidez? Ou, talvez, a interrogação que importa é a seguinte: porque damos atenção ao camarada Fidel?

9.9.10

Há palavras reveladoras: tribunais organizados em varas


In http://osirmaosbacalhau.files.wordpress.com/2010/05/porcos-gripe-suina.jpg
Por estes dias de imensa turbulência na justiça, de repente choquei de frente com uma palavra sintomática que lá está enquistada: os tribunais estão organizados em “varas”.
O que se segue é um exercício propositadamente manipulativo. Admito – e talvez professores de história do direito o confirmassem – que a palavra “vara” tenha uma etimologia própria quando aparece conotada com os tribunais. Eis a minha manipulação: uma vara é um conjunto de porcos. Sem desprimor para os bácoros, e correndo o risco de ofender a muito elevada dignidade dos actores que participam na justiça (juízes, ministério público, advogados – já para não mencionar actores involuntários: as partes que esgrimem argumentos e as testemunhas que levam atrás de si), a pocilga em que se transformou a justiça é a sua imagem acabada.
São os casos que acabam em nada apenas por acidentes processuais, por causa de um imprevidente acto ou omissão que sacrifica a substância da justiça aos mesquinhos caminhos processuais. É quando nos pedem para esquecermos os factos que são por demais comprovados, como se aquilo nunca tivesse acontecido. São os advogados manhosos que se mexem muito bem nos interstícios da lei, useiros e vezeiros em manobras dilatórias que impedem ou retardam a justiça. Dizem-me pessoas que vivem por dentro do meio: são juízes sobranceiros, normalmente os mais jovens que puxam galões à autoridade conferida pela toga, que assinam sentenças improváveis, a loquacidade da sua ignorância. É toda aquela prosápia, o “juridiquês” que põe os juristas em diálogo de frequência reservada. E são os protagonistas do meio: o presidente do supremo tribunal que parece retirado de uma charada dos Monty Python; o atadinho procurador geral da república, amigo do peito de políticos que, manda a estabilidade da pátria, não sejam investigados por suspeitas de crime; ou o bastonário dos advogados que escorrega todos os dias para a incontinência verbal.
E depois há as leis redigidas por juristas de gema, num linguajar hermético para afastar os leigos. As leis, tantas vezes um mar de ambiguidades – talvez para que os seus fazedores, prestigiados lentes que dão uma perninha na legislação estadual, possam depois assinar faustosos pareceres que ora dão uma no cravo, ora outra na ferradura. E são, ainda, os juristas de bancada que soltam a verve jurídica nos casos mais mediáticos, como se tivessem aprendido direito na universidade, ou como se estivessem por dentro das resmas de papel que compõem o tal processo mediático.
Só havia um termo melhor que “vara” para usar na organização interna dos tribunais, e esse seria “pocilga”. Aviltante seria, contudo. Pelo perjúrio que envolve. Uns quilos de maquilhagem semântica compuseram o assunto sem lhe retirarem a essência: pocilga não podia ser, mas vara lá se aceitava. E mesmo que a pocilga seja a casa onde vive a vara, a pocilga traz atrelado um imaginário popular de imundície que não é digno para a justiça. Assim como assim, os tribunais são um órgão de soberania. O que aconselha tratamento solene. Excluiu-se a pocilga. Reteve-se a vara. Os bácoros reconhecem que o são, sem quererem emporcalhar os tribunais por onde fazem vida profissional. É sintomático: não é na casa da justiça (os tribunais) que radical o mal; é nos seus intérpretes, que, congenitamente recos, mandaram que a casa de justiça se organizasse em varas. As varas onde se acoitam os atrás nomeados intérpretes da justiça.
Não gosto muto de certezas categóricas, mas lá vai uma: não podia ter melhor decidido quando, com o canudo de direito na mão, me afastei a sete pés desta pocilga.