16.9.10

De que serve uma alma penada?


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Sabes lá tu, tristes as figuras que desvelas enquanto arrastas os ossos na penúria das desgraças que desabam sobre ti. Ou das desgraças cujos efeitos amplificas só para fermentar a comiseração dos outros. Deitas-te no leito onde são tristonhos os lençóis, encardidos pelos desaires que tomam posse de ti. Sem dares conta como essa voracidade te consome. É uma espiral irremediável: quanto mais fundo mergulhas na demanda da melancolia, mais te aprisionas nas masmorras onde estão escondidas todas as almas penadas.
Não pode ser: não há existência apenas cunhada pelas adversidades. Tem que haver, por uns instantes que seja, uns lampejos de felicidade, um tímido sorriso ou uma sonora gargalhada, um dia em que os teus olhos entendem tudo em redor como uma luminosa coincidência de harmonia. Os outros com quem te cruzas, os desconhecidos de todos os lados, não são, por definição, gente pouco recomendável. De que serve desconfiares das palavras ditas pelos outros, ensaboares a pérfida hermenêutica de palavras e gestos como se neles houvesse sempre um segundo, um terceiro ou um quarto sentidos em intenções escondidas? Olha para os cemitérios. É neles que encontras a mais sublime lição da existência. Detém-te, por algum tempo, em volta das sepulturas que acomodam os ossos dos que perderam o privilégio da vida. E aprende.
Às vezes, confunde-se a causa e a consequência. Já nem tu sabes se a prepotência da alma penada em ti aconchega a visão cinzenta de tudo em redor. Ou se é o contrário: se mergulhas num infindável rol de adversidades porque teimas em pintar o mundo com um negro carregado. O que é evidente é o rosto sombrio, o ar psicologicamente extenuado que trazes contigo, as palavras trespassadas pela sensaboria. Em suma, tornaste-te uma pessoa feia e enfadonha. Outra vez uma dúvida existencial: és assim pela nutrida lista de desgraças que já te afligiram ou, por assim seres, és um poderoso íman que atrai mais contratempos? A voragem das tristezas empurra os ossos para uma pré-sepultura, como se a existência fosse um prenúncio da fatalidade que às vezes julgas que se demora em ti.
Parece que a propensão para alma penada é uma defesa. Achas que o ar compungido convoca a piedade alheia. A simples ideia de que isso possa acontecer tranquiliza o espírito. O que não te é dado a perceber é que o genuíno acarinhamento não é aquele que se filia na compaixão. Devias perceber que essa generosidade esconde um alçapão profundo. Quase sempre, as pessoas destapam o seu generoso manto de piedade como meio de se livrarem das interiores dores de consciência. Não ajudam quem pede a esmola dessa ajuda; ajudam-se a si mesmas.
Reivindicares a inditosa peregrinação pela vida é aviltante. Ate poderá haver infaustos acontecimentos que enegrecem episódios da existência. E até que alguns desses episódios deixem cicatrizes que custam a sarar. Prolongar as dores interiores até à eternidade é a maior ofensa à grandeza da vida. Outra vez, não te esqueças daqueles que já moram nos cemitérios. Não te esqueças de como eles te invejariam caso lhes fosse dada a oportunidade de se pronunciarem sobre as tuas interiores moléstias. A cada dia que passe sem te livrares da alma penada que tomou conta de ti, embrulhas-te num lamentável amesquinhamento de ti mesmo.
Existe pior doença do que a maceração voluntária do ser?


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