15.9.10

Tinta da China


In http://www.montalto.pt/catalog/images/pagina%20438.jpg
O fio de tinta aveludado que escorre no papel é um segredo, um mistério sem explicação. O olhar estreita-se, deita-se sobre o papel que se encharca com a tinta negra vomitada pela ponta da caneta. Como se fosse um microscópio em científica função. Jurara, esse meticuloso olhar, que o lento débito de tinta era o espelho da alma que se expunha em forma de texto.
A tinta da China enfeitava as letras que deslizavam na folha de papel. Pela sua forma de veludo, aquelas palavras ganhavam espessura poética. Não era como a escrita maquinal no computador, o eco surdo das teclas percutidas à medida que as palavras se apinhavam no ecrã branco. A tinta macia conferia sofisticação e magia às palavras que assim cristalizavam uma grandeza ímpar.
Não maquinal, antes meticulosa, a escrita já esquecida esbarrava em perigosas demandas. A maneira heterodoxa com que pegava na caneta era a adversidade maior à limpeza do texto que aparecia na folha de papel. O dedo polegar e o dedo indicador esmagavam a caneta, como se a fúria com que as palavras surgiam a isso obrigasse, levando o dorso da mão a varrer a folha de papel. Se as linhas não viessem espaçadas, o texto ficava esborratado pelo arrastar do dorso da mão nas linhas acabadas de preencher pela tinta da China. Ao menor sinal de borrão, a inspiração emigrava. Os olhos lamentavam as palavras vitimadas pela mão que se arrastava em cima do papel.
Debatia-se, o olhar, nos borrões exclamados, como se eles fossem o sinal de uma heresia dos sentimentos que povoavam as entranhas. A escrita perdia-se nas intermitências da distracção. A cabeça pousava no papel e fitava as palavras no sentido oblíquo, matizando as nódoas que se agigantavam em perspectiva no sentido do olhar desiludido. As ideias que confluíam em tempestade cerebral amansavam-se na distracção das manchas que, a certa altura, retiravam sentido às palavras já esboçadas. Outros pensamentos vogavam, em trânsito para terrenos diferentes. O texto interrompido perdera o fio à meada. Já não seria retomado.
O apuro estético da tinta da China tropeçava na pessoal incapacidade para o seu uso. Às vezes, de tanto querer era atraiçoado por não poder. Preso às ambiguidades da ineptidão corporal, esfumava-se uma veia que sentia latejar quando usava a apetecível tinta da China. Quanto mais insistisse, mais as palavras esborratadas pontuavam a decepção dos textos que abortavam à boca de cena da impotência funcional. A impossibilidade da tinta da China determinava a inércia da inspiração. Era como se uma venda embargasse a veia poética que julgava fluir pela entranhas.
E, todavia, não se culpava. Endossava as culpas para a incapacidade da ciência. Os cientistas já deviam ter inventado tinta da China que secasse assim que saísse do bico da caneta. Por mais que procurasse a redenção através da letra de forma providenciada pela escrita no computador, por mais que experimentasse diferentes fontes, ajuizava um resultado fracassado ao reler os textos dias depois. Era como o efeito da tinta da China sujada pela mão desastrada. Quando retomava textos com a distância do tempo, os olhos eram atraiçoados pela forma obtusa das palavras amontoadas. Tal como se as visse através dos borrões formados na tinta da China agredida pelo dorso da mão.

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