27.12.10

Generosidade, ou apenas a caverna da covardia?


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgA3O9oSrVfTjVWmMlFE7ZNQX6OuYUfj_71KDNErOUL60evmWYWa56fzzQGqeM-GLF_VzxYzUKbXjqn20CcwJa1Xqal9ngA2pY7GyxMo9GIqruKIqBeIX9sxHzybFtXBoqLGCwaxg/s1600/1478caverna.jpg
Tinha-o à sua mercê. Podia, enfim, usar as suas mãos como o algoz implacável que esperara anos a fio pelo instante da vingança. E como a vingança era merecida. O indivíduo andara uma fieira inteira do tempo a importuná-lo. Tomara entre mãos dois dos piores defeitos depostos numa criatura: deslealdade e ingratidão.
As relações cósmicas do universo, a que alguns chamam destino, compuseram-se de tal arte que o indivíduo viera parar às suas mãos. Ó justiça divina, se é que existes, não podias ser a prova maior de que a tua entidade tutelar é pródiga em praticar justiça entre as linhas tortas de uma folha encardida. Ali estava, o destino do indivíduo na dependência do seu exclusivo juízo. De repente, deliciara-se com o privilégio que lhe fora dado. Mas sobretudo com a apoplexia que se teria abatido sobre o indivíduo ao saber que ele podia ser o seu algoz.
O que faria? Se tivesse que decidir ao sabor da espontaneidade, seria implacável. As pagas pelas tormentas que o indivíduo lhe causara, com uma gratuitidade insultuosa. Mas não tinha que decidir naquele instante. Podia obliterar a espontaneidade e sacudir a espuma ácida que medrava entre os instintos mais óbvios. Uns dias para decantar o pensamento. Queria, por cima de qualquer outra coisa, ser justo. Evitar um sórdido ajuste de contas. E até o podia fazer sem que ressoasse um laivo de castigo salomónico.
Os dias que sobravam, podia-os consumir na sua própria decantação. Os dias passaram e na hora do acerto de contas, quando as suas mãos o tinham ali à mercê, desprotegido e com aquele ar falsamente cândido a clamar por piedade, as mãos ficaram inertes. Podiam apertar-lhe a jugular até o sentir inerte, a esfriar nas suas mãos. Mas o que houve foi uma paradoxal generosidade. Tudo se compôs a favor do indivíduo que andara uma fieira inteira do tempo a transitar na deslealdade e na ingratidão, deixando um rasto de importunação. Tudo se passara como se o indivíduo fosse um desconhecido.
Ao fim do dia, ao repousar a cabeça no travesseiro, estava contente consigo. Um acto de elevação só ao alcance de uns poucos. Dos eleitos – repetia em auto comprazimento. Teve um sono dos justos, como não lhe era ofertado há uma enormidade de tempo. Na manhã seguinte acordou sobressaltado. O acto de generosidade parecia ininteligível. Na véspera, ao deitar, convencera-se que vingara entre os pródigos na complacência diante dos que se entregam às mãos dos julgadores. Agora não tinha certeza. Interrogava-se: a generosidade não era uma farsa? O simulacro de bondade, apenas um biombo que escondia covardia. Não houvera coragem de descerrar a espada que o momento merecia. Só uma explicação para a covardia: queria refrear o desassossego de outrora. Não era sua intenção que a convidativa vingança afivelasse outro sobressalto – o seu interior sobressalto. De que servia o castigo implacável, remediava os sobressaltos de outrora?
Para o fim ficava a derradeira angústia. Às vezes, sintomas confundem-se com terapêuticas. Quando julgamos esposar uma cura – condoía-se com os seus botões – estamos imersos num sintoma. A patologia ainda a remoer-se nas entranhas. 

Sem comentários: