20.12.10

Outro cálice ao alto


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgZ49nHSDgPIMPsr-95pJonf0RKU_Su1ipbZn2pBZFb9OdPFUScjahDBU1BMbXDfHMBcYxDUBmuXh4CfTy1bsgQ8MWQ6ib0GhTVGINnIgPSFKB4QK48O62T7UNOIXOdNvPE9iq0pg/s320/ashes.jpg
O rapaz lera no periódico: “Walkinshaw morreu aos 66 anos”. Na Austrália feneceu um súbdito inglês. O homem que dirigiu equipas em corridas de automóveis enamorara-se da Austrália em fim de vida. E não quis regressar à pátria antes do passamento.
(E o rapaz, imerso na néscia curiosidade intelectual, entaramelou a divagação com outra que se lhe meteu nos fundilhos e interrogou-se: “por que não se trata por “mátria” a terra que nos dá nacionalidade”? Assim como assim, agora que é modismo recorrente não ferir as susceptibilidades das sacerdotisas da igualdade de género, quem nos dá nacionalidade, a terra-mãe, não devia ter o merecimento de pátria. A palavra arrasta o opróbrio da ancestral dominação masculina. O corrector ortográfico de primeira apanha que instalara no computador não reconhecia “mátria”. Pediu conselho ao dicionário. Mais modernaço, devolveu em resposta: “a pátria vista pelo lado feminista”.)
Havia outra pergunta, pungente, a adejar o problemático rapaz: não devia um homem em fase terminal, sabedor da fatalidade em espera, instruir os mais chegados para ser encomendado à terra que o viu nascer? Que descaminhos teriam indisposto Walkinshaw contra a Inglaterra mãe? O rapaz, ingénuo como o são os rapazes embebidos em inane curiosidade intelectual, mergulhou na perplexidade. Ao lado, o tio, vendo-o debater-se num daqueles frequentes momentos de elucubração que o fazia ruborizar, atirou sem o olhar (a fingir desinteresse):
- precisas de ajuda?
- Estou aqui a ler uma notícia...O Walkinshaw morreu e não quis ser enterrado em Inglaterra.
- Quem era esse? (lançou, já atraído para o tema da conversa, o tio)
- Era um tipo das corridas. Mas isso não interessa. Uma pessoa não devia ser enterrada na terra que o deu ao mundo?
- Essa agora. Não posso estar zangado com a pátria e querer funeral em lugar estrangeiro?
- Mas eu vejo notícias a toda a hora e somos identificados pelo nome e pela nacionalidade. Eu acreditava que estávamos empenhados à pátria. Ser enterrado noutro lugar é indigno.
O tio julgou ser oportuno um daqueles momentos muito pedagógicos, carregado de moralidade bolorenta. Não era para aí que estava virado. Preferiu espalhar a confusão, que a toma como mais pedagógica:
- Diz-me uma coisa: o tratador da águia do teu clube, o que está incompatibilizado com o presidente, e que a imprensa tonta se apressa a transformar em notícia, o indivíduo não é espanhol?
- E daí? (interrogou, ainda mais perplexo, o desorientado rapaz)
- Daí que os corpos podem ter serventia quando são oportunas mantilhas para a soberba dos nacionalismos. Uma vez mortos, somos todos matéria inerte. Perdemos valor para os nacionalismos...
O rapaz interrompeu-o, com fúria:
- ...Ah, como estás enganado! E os heróis, como tratas os heróis das nações?
- Lenha para o orgulho fátuo dos inebriados com a fogueira sem lume que é o nacionalismo. O que valem os seus corpos, senão para romagens que exaltam a pertença que já não é deles? Vês a inutilidade de um cemitério?
Sem ponta de sangue, o rapaz ficou lívido ao escutar a revelação do tio em jeito de fim de conversa:
- Sabes? Já ordenei à tua tia: à minha morte quero que as cinzas sejam espalhadas do alto de um avião em voo transatlântico, quando estiver no equinócio entre a Europa e as Américas. As cinzas irão com o humor dos ventos. Brindas comigo?

5 comentários:

Vanessa, a Mãe Possessa disse...

Esta necessidade de nos ancorarmos a um pedaço de terra é de uma irracionalidade enternecedora.
Ao ler esta crónica lembrei-me imediatamente de Scarlet O'hara ("E tudo o vento levou"), afincadamente enraizada a Tara...
Brindemos às terras que conseguirmos conhecer em vida, para que consigamos perecer em qualquer canto do mundo.

Anónimo disse...

Aposto que o tio eras tu, PVM!

PVM disse...

Não podia. Só tenho uma sobrinha.
PVM

Diferencial activo disse...

Com esta crónica lembrei-me que tens uma promessa para cumprir; um dia destes vais ter de ir espalhar as minhas cinzas no belíssimo Autódromo de Monza - catedral da minha Ferrari, para que como cita a Spinova "...consigamos perecer em qualquer canto do mundo." Eu já escolhi!

PVM disse...

Monza, eu não me esqueço. Promessas destas não se podem esquecer!