17.1.11

Apologia das manhãs


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Ah, as alvoradas, como são frescas. Desbloqueiam o torpor que se consumiu no sono da noite. As noites escondem os sonhos, ou os pesadelos ininteligíveis. O corpo renova-se com a primeira claridade da manhã, que o liberta da ansiedade dos pesadelos. Pelos dedos matinais entra no corpo um aluvião que o levanta para o dia pleno, para o dia no seu esplendor.
Nunca entendi aquelas pessoas que desdenham da manhã. Desperdiçam a frescura da alvorada entrando com o sono pela manhã dentro. Quando chegam ao dia já ele vai alto. Gasto. A essa hora em que se adianta o entardecer, já foram dissolvidas as propriedades mágicas de um começo. Eu sei que se dizem noctívagos, que são capazes de discorrer sobre o encantamento da noite, da coreografia das luzes que incendeiam a cidade febril. Os que se prolongam pela noite fora também conhecem a alvorada. Ela chega aos seus olhos enquanto se fazem a casa, já cansados.
Eu digo que lhes falta lucidez para captarem toda a frescura que se põe numa alvorada. Digo: que perdem o mais belo da manhã, a sucessão de minutos e horas que desvela as cambiantes das cores à medida que o sol é içado a caminho do firmamento. E, no entanto, andamos nas ruas quando o relógio anuncia que é muito cedo e os rostos acabrunhados avivam a contrariedade da maioria que se entrega à manhã.
Nos começos, como por exemplo nos começos dos dias, está retida a pureza dos significados, como se fosse necessário enclausurar nos dedos a ingenuidade latente que vem agarrada às coisas. As manhãs reproduzem essa grandeza. Os ponteiros do relógio desgastam-na. A sua cadência compassada, aritmética, sinaliza o envelhecimento do dia. O seu cansaço traz outras cores, não direi menos encantadoras; mas de um encantamento diferente, sem as luzes decantadas que se revelam na alvorada, ou mesmo as luzes baças quando a alvorada destapa o nevoeiro denso que se demora pela manhã fora.
É intrigante como uma expressão – “é muito cedo” – é depreciada pelos costumes dominantes. É tão extemporâneo chegar cedo como tarde, mas os costumes mandam ser mais tolerante com os que se demoram para além da hora combinada. Insuportável é chegar mais cedo. Talvez se possa fazer a ponte com as manhãs vilipendiadas. Acordamos e, ainda estremunhados pelo sono interrompido a contragosto, dizemos que ainda é muito cedo. Depois valem os relógios biológicos de cada um: há diferentes alvoradas pessoais. Por dentro das medidas relativas, um acordar cedo pode ser tardio para outra pessoa. Mas quem nunca disse, quando os olhos se libertam da opressão do sono, “é muito cedo”? Eis a carga adversa da alvorada: é por essa altura que é cedo.
A cidade quase deserta que desponta na companhia da alvorada revela os seus segredos. Eles estão obnubilados pelo frenesim das horas mais tardias, quando as ruas são tomadas de assalto pela multidão apressada, a multidão sempre atrasada. Pela alvorada, quando a luz irrompe ainda intimidada pela noite poderosa que tinge o céu, decantam-se as cores. O ar parece mais leve e as poucas pessoas que andam na rua não ostentam o ar contrariado de quem foi arrancado à cama. É a essa hora matinal que os cantos das aves podem ser apreciados antes de elas se esconderem nos ninhos, assustadas pelo bulício. Antes do seu chilrear ser suplantado pelo ruído intenso da cidade que vem para a rua em surdina.
A manhã desgasta-se. E não é pelo andamento dos relógios, que prenunciam o entardecer que emprestam rugas cansadas ao dia. A manhã é desgastada pela multidão que sai às ruas.

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