21.2.11

A raiz quadrada da impossibilidade


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Os olhos tão abertos recusam o sono. Temem que um abutre saia da toca e venha devorar o que outrora fora uma casa cheia de intenções. Ou, às duas por três, a casa entrou em ruínas, antes do tempo, sem que o tempo revele os alicerces apodrecidos. Por isso os olhos recusam o sono. E temem que um maldito abutre comece a esvoaçar com água na boca para trinchar a apodrecida carcaça. O sono adiado fragiliza a casa, torna intenso o cheiro a podre por dentro. Não tarda e os abutres fazem-se notar.
Quando se regressa às páginas dos dias vividos, levantando a poeira que nelas se deitou, exalta-se o perfume da incapacidade. É como se os dias correntes estivessem viciados, declinando perante as incapacidades que sobram de trás. Os pés tropeçam em ciladas conhecidas. E nem por serem conhecidas as ciladas se desviam do caminho – diria, néscio, convencido que o caminho deve ser maleável aos imponderáveis. Esta incapacidade talvez fosse embirração com o passado. Talvez a teimosia de o recusar, como se dele já não houvesse nada para aprender. Aos bolsos onde sobram os vestígios. Ora adocicados, quando em refluxo dos tempos voltam a ser provados. Ora amargos, quando as lições de outrora, as lições que o vetado pretérito alimenta a recusa da própria importância, parecem não contar para nada.
As nuvens densas, assustadoramente escuras, acastelam-se sob um céu tão baixo que se parece esmagar sobre a cabeça. São os dias esgotados na sua beleza, os dias que doem. Mais valia saltar esses dias no calendário, ou sobre eles passar com um longo sono que fosse a sua ilusão. Mas o sono é outra impossibilidade. Ah, como ilusão e impossibilidade parecem rimas perfeitas num poema que não devia ser dado a conhecer aos olhos cansados. O que temos quando as retrospectivas se insinuam, quando elas entram pela carne dentro, tão dolorosas, e nem o sono é um bálsamo porque pelos seus dedos chegam mais recordações que derrotam o fingimento?
Fala mais alto uma teimosia indeclinável. Ela atropela os cintilantes avisos de prudência que, como as nuvens plúmbeas, se acastelam no horizonte das memórias que magoam. Às vezes, parece ensandecimento. Ou uma terminante recusa de lucidez. São inúteis as esperas nas esquinas onde se recolhem os fragmentos das lições de antanho. A teimosia irrecusável, a que também se podia chamar optimismo no porvir, não aceita que o passado seja mestre em lições. O tempo é irrepetível – e essa é a lição maior.
A encruzilhada plangente: o corpo metido numa camisa-de-forças, entre a recusa da inércia das recordações, de onde uns olhos míopes teimariam em recolher consequências; e os olhos projectando-se num porvir que não querem adivinhar, apenas saborear enquanto os dias se repetem, um atrás do outro. A encruzilhada entre as impossibilidades sobrantes, as que a poeira das memórias regurgitam com espasmos violentos, e uma certa esperança farta de que algum dia uma possibilidade supere as ameias das vãs promessas.
Para saber que os braços poderosos da impossibilidade alguma vez hão-de soçobrar diante do altar de uma qualquer possibilidade.

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