23.3.11

Da crueldade

Esta fotografia tem uma história. Há uns anos foi premiada num concurso parecido com o Pulitzer da fotografia. O autor foi incensado pelo desassombro do retrato, a violência incontida recolhida na moldura da fotografia. Outros despejaram a fúria em cima do fotógrafo: como se já não chegasse a indignidade de uma criança faminta e devorada pela sua própria fome estar no limiar da morte, éramos esbofeteados pela imagem que prenunciava as bicadas do abutre na carcaça da criança.
A criança arqueada no seu sofrimento, desvalida perante a indignidade de um destino que lhe ofereceu uma curta e tão sofrida vida, e o bicho esperando pela estocada fatal. O fotógrafo foi lapidado pelos críticos. Devia ter enxotado o abutre. Devia ter recolhido a criança daquele inóspito lugar, transportá-la até ao sítio mais próximo onde houvesse cuidados médicos. Para ao menos se atear uma derradeira centelha. E ainda que essa centelha não fosse uma fragilidade inconsequente, que o fotógrafo tivesse a elevação de escorraçar o abutre que esperava pela estocada final na vida ingrata da criança.
Todos estes anos foram consumidos pela dúvida alimentada no silêncio do autor da fotografia. Esse silêncio alimentou especulações. Teria o miúdo morrido ali, no estertor do seu arqueamento doloroso, o estômago a consumir-se nos espasmos finais? Teria o abutre ensaiado os passos determinados na direcção da cadavérica criança, começando a debicar o mirrado corpo talvez ainda dentro do prazo de validade da existência? Não se soube nada durante anos a fio, as interrogações todas esbarrando no silêncio ofendido do homem que teve a coragem de retratar o pungente cenário. O fotografo morreu há semanas. Soube-se então o que o mundo inteiro estava ansioso por saber. Um filme com final feliz: a criança não morreu aos pés do abutre; afinal, e isso é que contava para as consciências sobressaltadas, o bicho não fez da enfraquecida criança sua vitualha.
Ficou gravada na eternidade a imagem cruel berrada pela fotografia. Os que não souberam da posteridade do instante retratado, assaltados pela violência atroz ao darem de caras com a fotografia, conviveram com a perene imagem que antecipava o esbulho da dignidade quando o animal se saciasse no infantil corpo inerte. A fotografia, um ícone da crueldade em estado puro. O mote para extrapolações várias, a indagação da crueldade em que tropeçamos, ou da crueldade de que nos achamos vítimas aleatórias.
Aos rotineiros militantes dos infortúnios, os que teimam em pespegar em si mesmos os rótulos da mofina, talvez fosse útil observar demoradamente esta fotografia. Demoradamente, deviam colar os olhos no retrato, obrigados a manter a observação por mais enjoos que deles se apoderassem. Aprenderiam que a crueldade é uma medida relativa. Esses rotineiros militantes dos infortúnios podiam ainda ser mestres dos desapiedados que nunca esboçaram um esgar de contrariedade ao verem a fotografia, ou dos optimistas encartados que se sossegaram ao saberem do segredo guardado pelo autor da fotografia. Aquela infausta criança, nascida na terra errada, terá sido salva das mandíbulas vorazes do abutre. Que se desassosseguem, descompondo-se o optimismo em forma de autodefesa: quantas crianças perecidas à míngua de alimentos não terão sido devoradas por abutres pacientemente à espera?


Quantos abutres e se não andam por onde menos se espera?

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