21.3.11

O bastião


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Podiam mil palavras, entoadas em uníssono por outras tantas pessoas, tentar demover da insensibilidade. Em vão. Ou porque a teimosia se emproava, muito alta, deixando no peito uma couraça impossível de atravessar. Ou porque o perverso abismo pela contradição fazia os possíveis por encher de cimento aquela couraça. Pacientemente, com a diligência dos anos a fio como caução da experiência, aprendeu a imunidade das contrariedades.
O método não era ladear as adversidades, nem antecipá-las fugindo às suas dores. Elas vinham de frente aos olhos. E os olhos viam-nas com nitidez, sabiam ao que vinham. O ardil era atravessar a tempestade pelo meio, ora de olhos fechados, ora de olhos abertos, deixando o corpo revolver-se no turbilhão dos ventos soprados pela violência do furacão. Não havia chuva, por mais desapiedada que fosse, capaz de desatar uma interior descompostura. Os alicerces tinham as raízes fundas e nenhuma tempestade, por mais terrífica que fosse, mexia nos pilares que tanto custaram a enraizar.
Provações, contrariedades, alguns passos em falso, palavras malditas, umas mossas que desalinhavam a harmonia que os diligentes dedos haviam composto. Não havia já medos, nem a sucção do ar que punha os pulmões em apneia nos acordes das aflitivas consumições, a tirar o sono nas noites que esconjuravam o cansaço do corpo. Os destemores eram o passaporte da frugal sensibilidade. De que adiantava alçar a cancela às catilinárias do destino, virar o corpo às luas de onde vinham as luzes enegrecidas que adulteravam as feições saudáveis?
Aprendera. Aos equívocos, aos irremissíveis passos em falso, sucedeu-se um escudo impermeável. Os pesares eram apenas uma lição que aprendera a não repetir. Receava que o invólucro hermético que construíra em forma de altaneiro castelo o atirasse para o isolamento. Não era o caso. Descia do refúgio e misturava-se com o ajuntamento de gente que se entrecruzava na cidade. Falava. Não fugia das pessoas. Mas aprendera, com a sucessão de enganos que embotavam a lucidez, a ser como uma ilha cercada por escarpados promontórios que desciam vertiginosamente até ao mar. Uma ilha onde fosse impossível amarar.
Passou a haver um bastião que mais ninguém conseguia habitar. Do lado de lá das ameias impossíveis de franquear, talvez um certo autismo. Talvez um propositado isolamento com as cambiantes da solidão. São os males necessários – ou a prescrição das terapêuticas que amanham os males interiores, e os males que perdem a sua espessura. Os olhos têm que passar pelo necessário tirocínio. Aprendem a filtrar as luzes que outrora seriam um punhal a estilhaçar a lucidez por dentro. No corpo nidificam as ameias tão inacessíveis onde se proclama um santuário proibido à devassa.
Todavia, os convencimentos interiores podem não passar de isso mesmo, convencimentos. Uma cortina de fumo que embacia o olhar. E se assim for, ao menos que o autismo, o não doentio autismo, seja a maceração do bastião onde as coisas incómodas perdem a sua incomodativa feição. As aleivosias vêm de frente e o corpo passa por elas sem se tisnar. O bastião é como uma câmara onde são dados todos os refrigérios. 

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