14.3.11

Profeta do desamor


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Atirava ao lago pequenas pedras recolhidas do chão de terra. O olhar perdia-se na imensidão de um firmamento imaginado. Ao lado, um par de namorados calcava com a suavidade dos pés nus a relva macia que se dispunha à sedução. Depuseram os corpos no tapete de relva e mergulharam nos braços enquanto os lábios arpoavam beijos demorados, lânguidos.
Ao início desviou os olhos para o poente, na diametral dimensão do enamoramento dos jovens. Logo a seguir deixou de lutar contra os instintos. Fitou o casal de namorados até ela ter notado e, incomodada, ter sussurrado ao rapaz. Este fez menção de se levantar e pedir satisfações ao mirone todavia sem más intenções. Ela refreou a coragem do mariola – que porventura, no rubor onde se consome a paixão madrugadora, exige prova de valentia. Mal arregaçou as mangas, o rapaz sucumbiu aos deleites da mão da namorada pousada sobre o rosto, empurrando-o para junto do seu peito. Não disfarçavam a apoquentação. Sabiam lá ao que vinha o homem com o cabelo grisalho, embebido naquele olhar mortiço de onde se projectava um grito surdo de tristeza. Retiraram-se para onde houvesse sossego que consolasse o namoro apetecido.
O homem continuava a macerar angústias junto ao lago das águas lamacentas. Não fosse o vento que despenteava o chão de água e conseguia discernir todos os poros por onde a tristeza se esvaía de si para o exterior. Há tantos anos que não era visitado pela companhia de uma mulher. Ele tentara, por muito tempo. Em vão. A certa altura abandonou as esperanças. A cada passo, o desinteresse das pretendidas esbarrava na indiferença.
Ensaiara as lições aprendidas nos filmes (como se os filmes fossem tirocínio com serventia). Ou porque escolhia mal as palavras, ou porque as olhava por um ângulo desacertado, ou porque era precipitado e queria saltar muitas janelas de um golpe só, tudo que o seguia era um desamor incondicional. Os convites para jantar que mereciam desdenhosa esquiva. As abordagens fracassadas – ora as explícitas, que chegaram a merecer indignado esbofetear; ora as implícitas, que ou eram desmascaradas pelas pretendidas, ou eram mensagens indecifráveis pela oportuna ignorância das ditas. As prendas devolvidas, os telefonemas prometidos e que nunca chegaram a ser feitos, os murmúrios que tinham ecos diferentes. Havia uma crueldade dos destinos preparados para aquele homem precocemente grisalho. Já se convencera: era desajeitado para a função. Sobrava a solidão como arguta companhia.
Mesmo assim era acossado pelos sobressaltos interiores que às vezes atravessavam semanas inteiras. Apiedava-se junto dos amigos, como se essa comiseração trouxesse os troféus pretendidos. Na cristalização da idade, aprendera que as coisas procuram a sua própria espontaneidade. A piedade era a confissão da incapacidade. Não se envergonhava dela. E não queria, através dela, que uma qualquer donzela desabitada tocasse à sua janela. A certa altura, apoderado pelo cansaço e profeta dos lençóis da solidão, arranjou uns lustres para verter em letra de forma o cardápio do desamor.
E foram tantas centenas de páginas recolhidas que não conteve três lágrimas que se verteram sobre a página de rosto. 

2 comentários:

Giselle Trindade disse...

OLA.
GOSTEI BASTANTE DO SEU BLOG E VOU SEGUIR COM CERTEZA.
GOSTARIA MUITO QUE ME VISITASSE E SEGUISSE:
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BEIJOS

Vanessa, a Mãe Possessa disse...

Um amigo meu preconiza: "não se deve procurar A Mulher, mas sim O Amor" e talvez concorde com ele...

No entanto, as ciências sociais actuais prometem destacar o anónimo de entre a turba, exterminando assim os "profetas de desamor" com a emersão da marca pessoal (o cosmopolita "branding"!) e de slogans entusiáticos que nos incitam a ser o que gostaríamos de ouvir numa descrição sobre nós (http://1.bp.blogspot.com/_fS5z_JHwdIo/TT27mPGSnZI/AAAAAAAAAts/K5yYRLPGm1w/s320/another_Way_understanding_branding.jpg).