30.6.11

Intoxicados


A maresia arpoava os ferrões ácidos na embocadura do cérebro. E depois havia a miríade de luzes que saltitavam, anárquicas, de um lado para o outro, comendo outro bocado do entendimento. Às tantas, desembrulhava-se a capa rubra dos sentidos, onde tudo se desordenava numa harmonia invulgar.

Demorávamos nos lugares, demorávamos os olhares e estendia-se o tempo até à alvorada que irrompia num sobressalto. Às vezes não recuperávamos a lucidez, os vestígios acobertados por um denso nevoeiro que embaciava as recordações avivadas pela frescura do tempo. Sabíamos que o atapetado da inebriação momentânea trazia uma vaga sensação de intemporalidade. Era como se entrássemos na anestesia dos corpos, os gestos autómatos conduzidos pelos dedos de uma entidade insondável. Dizíamos um ao outro que dizíamos coisas que não nos eram dadas a dizer na embriaguez da lucidez. Metíamos conversa com desconhecidos que apareciam. Jurávamos amizades fugazes que se perdiam na poeira em que se depunha a ausência de memória.

Na iridescência nocturna, os passos desarticulados erravam por ruas desconhecidas. As pedras gastas da calçada eram testemunhas solitárias dos delírios incongruentes que assomavam pela fechadura da intoxicação. Todos os delírios eram incongruentes – sussurravam ao ouvido, em perene teimosia que intuía a liquidação da digressão pelas desertas ruas em horas impróprias, uns anjos pretorianos que aconselhavam o recato. Afastávamos com um gesto brusco os anjos que mais nos pareciam demónios, num esquizofrénico gesto de quem imagina seres invisíveis aos olhos dos demais. Não queríamos que eles viessem encerrar num patíbulo as quimeras prometidas pela errância a horas tardias.

Podiam os corpos escorregar nas pedras húmidas das ruelas atamancadas entre o casario lúgubre. Podíamos ser enganados por oportunistas comerciantes que se apropriavam da candura incendiada pela irreparável temulência. Podíamos vegetar na demência dos excessos, acordar imersos num profundo arrependimento das quimeras afinal desencontradas. Podíamos jurar dias diferentes, as juras embelezadas pela esquadria da sagrada decência. Que logo irrompia outra noite que revistava as promessas, decantando toda a sua usura, esvaziando os juramentos a uma pálida, inerme imagem. E os corpos entregavam-se a nova errância, às miragens que impediam um raciocínio de fio a pavio. E o que interessava articular um raciocínio com princípio, meio e fim, se todos os dias, no púlpito da lucidez, o pensamento se demorava em vigílias labirínticas?

Ouvíamos os pesares das vozes conselheiras. Os conselhos de médicos, que acenavam em compungido tom reprovador ao deitarem os olhos nas folhas onde se depunham os resultados das análises ao sangue. Por mais que se içassem os alçapões que seduziam quimeras ininteligíveis, e por mais que regressássemos destas batalhas exangues, com mais um pedaço interior destruído, ferviam as veias de cada vez que adejava a promessa das errâncias nocturnas nos interstícios das intoxicações imagináveis.

Foi um tempo que pertenceu ao conhecimento. Hoje dizemos que ficou um pedaço de nós lá atrás, nessa intemporalidade emoldurada nas margens da intoxicação. Hoje, que a monotonia espreita com os seus remorsos, apetece-nos desligar da (já possível) vetusta era em que medramos. Mergulhar nos delírios incongruentes. Um salto no escuro: se é para experimentar uma luminosidade desconhecida, ou se o salto afivela as saudades do sossego da madurez, os dias vindouros darão resposta.

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