8.7.11

As horas venais


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Arqueada sobre o dorso, enquanto despenteava os cabelos encaracolados, punha os sentidos em modo retrospectivo. Aquelas horas, um imenso lodaçal onde a agonia se depusera, irromperam com os atilhos da letal acidez. Por dentro dela, uma tempestade em plena voracidade. Os pesares congeminando-se na volúvel tela negra diante dos olhos – da tela negra que comporta múltiplos significados.
Os olhos marejados pelo que sentira ser um ultraje retiravam lugar à lucidez. Enquanto se demorou nesta insana altivez, as horas desfolhavam-se na sua venalidade. Soçobravam, essas horas impantes, na comiseração do nada, essa tão inútil comiseração. Umas vozes sussurravam ao ouvido conselhos não sábios. A sageza do tempo estava sequestrada pela poeira acidulada que se insinuara nos ponteiros do relógio, retardando a sua marcha. Só que ao invés do ideal retardamento temporal (haveria serventia dele caso essas horas fossem de um intenso preenchimento interior), estas eram horas extemporâneas, sangradas. Inúteis.
Turvados os sentidos, a cabeça fervente fixava os esgares denunciados pelas vidraças à volta. E nem os esgares mereciam reprovação, como se no rosto dela habitasse um sobrecenho que era a simetria da simpatia que, nos tempos que foram propícios, lhe fora congénita. Ela motejava das horas de harmonia, como se todos os equilíbrios atrapalhassem a bússola que importava. O sangue fervente, em pose triunfal, sobrepujava o resto. O mesmo sangue fervente embaciava a nitidez apodrecida daquelas horas venais, no restolho dos estéreis desvios.
E se, ao menos, o vento furioso amainasse e as folhas em desordenada coreografia tomassem o seu tumular berço no chão, alguma lucidez devia sobejar. O sono que tivesse sido dormido teria esse préstimo. Mas o sono não tinha sido dormido e os feixes de luz atiravam-se de um lado para o outro numa imensa confusão que obliterava os sentidos. As horas continuavam na sua venalidade, mesmo quando, extenuada, declinou perante o sono irrecusável. O sono não curara a impassível venalidade que granulava as palavras outrora doces, as palavras que desfilavam na língua como veludo onde se retemperavam.
O sono já dormido seria o juiz absoluto. Podiam as cortinas continuar baças e as horas por diante teriam todas o mesmo suor gasto das horas pretéritas. Palavras algumas teriam preço para demover a rigidez que tomara conta do corpo. Ou podiam os olhos ainda estremunhados notar outra claridade, trepando pelos poros humedecidos das árvores na combustão matinal do orvalho. Para o caso, uma condição: que, na alvorada, a hora não fosse tardia, que o orvalho nutriente se mantivesse, em vestígios que fosse, no musgo agarrado aos braços das árvores.
O sono teria a função de resgatar as horas da impassível venalidade, dessa corrupção dos sentidos que pareciam atilados no (falso) vicejante orgulho. Por cima do destino do sono, um ingrediente que escapava à sua manipulação: ele, também assoberbado com as lágrimas das horas na sua decantação venal. O jogo podia ser pueril. Ou apenas emparedado pela lâmina fatal.

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