1.8.11

Os loucos de olhar perdido no chão


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjjcwtLxSck3A2vtfftyy7sBe20Ux2Uk4dKG2quqLPQFDRzF0wEt-8QOEqp_C5yChGkunqRc1ZIkoxp1skACiRFyalX7xxGjzUxEnI2eQl9R2vXvH3TB_ZMOmxIDnex-Mae3ahmEQ/s400/louco.jpg
Uma reportagem sobre um hospital psiquiátrico que vai mudando de instalações. Nas páginas da revista, a entaramelar o texto, abundantes retratos dos doentes. Todos os retratos a preto e branco. Todos os doentes escondendo o rosto, apontando a cabeça na direcção do chão. A reportagem manda dizer aos senhores que mandam nos hospitais psiquiátricos que os doentes que por ali ainda andam não querem ser empacotados para o novo hospital. E os que já foram recambiados para as modernas instalações esboçam lágrimas de saudades do hospital antigo.
Se aquelas fotografias falassem pelos depoimentos dos pobres loucos, dir-se-ia que todas as respostas foram dadas com o rosto afinado à pose cabisbaixa. Ou, dir-se-ia, os loucos apanhados na objectiva do fotógrafo embebiam os preconceitos maiores e vertiam no olhar cabisbaixo a vergonha por terem sido apanhados na cilada da insânia. Nas páginas, nas muitas páginas da reportagem, não havia um só retrato que identificasse os rostos marcados pela demência. Dirão: o pudor do fotógrafo e do jornalista tudo compôs. Esse pudor ditou os retratos dos loucos sempre arqueados sobre o solo. Que interessava a revelação das suas identidades faciais?
Prefiro outra teoria (porventura mais implausível): de cada vez que a objectiva da câmara apontava na direcção de um louco, dele se tomava uma súbita lucidez e o rosto escondia-se nos confins do chão. Os olhos perdidos por entre os pensamentos labirínticos e sem loquacidade. Apenas os cabelos quase sempre grisalhos, quase sempre desgrenhados, em pose para a obturação da câmara. Para a compostura de quem não queria oferecer o rosto e ser reconhecido, por eventuais leitores conhecidos, como um agora demente.
Um dos doentes do novo hospício mandou perguntar pelos gatos do seu antigo lugar, perguntou se ainda lhes dão de comer. Pelos dedos desta vergonha, os loucos ostentam uma lucidez desconhecida à multidão que passeia, vitoriosa, a sua saúde mental.
(Em Vilamoura)

Sem comentários: