8.12.11

Como o diabo foge da cruz


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg8Wk-H1mduGAMGLY_mR93zwWge8RGfhgS5FBNEXNUPNnGww5RrFHoztLa3TLyaSvmhXU0gIt8msoZf8XW00x6MUyi4dyzqY9MceReEBC1PcOTbabWOuT1a_3ENgELD0F1qu45x/s1600/a-cruz-e-milhoes.jpg
O nevoeiro ocupava as cortinas da nitidez. As luzes entrecortavam-se em diferentes camadas, misturando-se. A macieza da penumbra ocultava os corpos presentes e anunciava, talvez sem se precatar, o aparecimento de fantasmas que povoam pesadelos indistintos. As gotículas que se desprendiam do nevoeiro persistente deslaçavam-se nos corpos que ficavam humedecidos, metidos numa sonolência a destempo.
De repente, um sobressalto telúrico. Não sabia se a corrente de ar que se apoderara do corpo era apenas fenómeno da meteorologia ou se era um espírito endemoninhado a largar as presas nos poros enfraquecidos. O corpo ficou aprisionado pela inércia. Queria mover a cabeça para o lado, pedir socorro a quem por lá estivesse. Mas estava emudecida. Se ao começo julgava ser alucinação das drogas, mudou de ideias ao perceber a paralisia sufocante (e ademais naquela noite não houvera drogas). O pânico trepou pelas paredes do corpo e quando assomou ao cérebro libertou as algemas que embotavam os movimentos e as palavras.
Num frémito, desatou a correr como se estivesse atacada pela demência. Berrava contra os fantasmas que a perseguiam, sem que ninguém conseguisse pôr a vista neles. Jurava que estavam atrás de si com punhais afiados, enfurecidos por causa das injúrias de que não lhe deram notificação. E corria loucamente, sem parar, sem perder o fôlego. Esbarrando em gente, derrubando cadeiras e mesas e bebidas das esplanadas que apareciam pelo caminho. Uma anciã sem sono dissolveu as dúvidas: “está possuída pelo demónio”.
Enquanto montava as longas pernas na correria desenfreada, balbuciava uns urros ininteligíveis. Afogueada, o suor a desprender-se dos poros exaltados, foi dominada por três polícias que faziam a ronda. Deitaram-na no chão molhado pela cacimba noturna. Esperneou tudo o que pôde. E protestou, já na língua nativa, que uns demos transfigurados de fantasmas queriam levá-la para a terra dos mortos. Persignava-se (logo ela que era ateia) para afugentar os maus espíritos que revolviam a sua tão entranhada fragilidade.
Na ambulância deram-lhe, a contragosto, poderoso sedativo. E logo repousou nos lençóis aveludados dos doces, suaves sonhos que desmentiam as alucinações preenchidas por fantasmas imaginados.

Sem comentários: