31.1.11

Conta-me histórias


In http://www.ruadireita.com/info/img/a-mais-cruel-das-tiranias-historias-reais-ou-nem-por-isso.jpg
Segreda-me ao ouvido as histórias que ninguém quer ouvir. Nem que sejam as palavras gastas. Entoa-as com uma voz que seja a antítese da melodia. Sussurra-as, ou então dispara-as com os decibéis em alta. Histórias. As de encantar, ou as que são um convite ao esgar de desprazer. Histórias vindas da algibeira pessoal, ou aquelas encontradas nas profundezas da imaginação.
Histórias feitas de gente que existe, gente que se cruzou algures nas mesmas avenidas. Ou as outras, as que recrutam protagonistas inventados, uma imensidão de figurantes de rosto imperceptível, só para fazerem número. As histórias são o manjar opíparo que nos mantém em vigilância. Arquitectam-se nas faldas dos devaneios, nos contrafortes das quimeras, decantando poemas fracassados ou prosas que se queriam escorreitas e se arqueiam no hermetismo das palavras. Que interessa se são histórias que cativam os outros se nós por elas passamos os olhos? Desde que sejam histórias, e contadas aos nossos ouvidos, retêm-se no seu fio condutor. Nacos de prosa que sedimentam um porvir.
E podem, outra vez ainda, as sintonias andar a descompasso. Desde que haja histórias e elas sejam entoadas, desde que as palavras não fiquem aprisionadas na vulgaridade dos silêncios, elas são a sua própria recompensa. Como um guião de um filme que é estranho aos demais, ininteligível; mas essa nebulosa é de uma claridade tremenda com as histórias que sussurramos. É como se houvesse apenas um idioma entendido pelos que decantam as histórias.
Pela mão das histórias que contamos, há um trivial desassombro que derrota a monotonia reinante. Dir-se-ia: um mundo por dentro do mundo, ou melhor, os mundos que quisermos dentro do mundo que aos olhos nos é dado a perceber. Arregaçamos as mangas e deitamos os braços à criatividade. Que não haja ilusões: a criatividade, como o sol, não aterra todos os dias diante dos dedos que materializam em letra de forma as histórias alimentadas desde as entranhas. E também isso não interessa. As histórias nascem de esboços. Umas vezes ganham vida própria, é como se fugissem das mãos do criador e fossem pelos caminhos por elas desejados. É quando as histórias ganham maioridade que elas mais recompensam.
Histórias, pois, e todos os dias. Para fugirmos à sensaboria da actualidade. Lambemos as feridas evitando a actualidade? Porventura. São um bálsamo para as cicatrizes que teimam em ser mostruário da actualidade cortante. Uns dirão: de que adianta desviar os olhos se a realidade continua a esbracejar, tão iníqua como deplorável, diante do corpo? Nada disso interessa. Pode ser uma anestesia, ou apenas um hipnotismo inconsequente que se derrama sobre a actualidade, remetendo-a à hibernação. As histórias encavalitam-se, rainhas supremas de tudo, construindo-se sua própria realidade.
Todos os dias, histórias. Nem que sejam banais, que por vezes a banalidade é a caução das coisas que dão sabor à existência, pelo seu flagrante contraste. Mas todos os dias, histórias. Ou caímos, vegetantes, numa paliativa forma de vida, como se das nossas pernas se soltassem raízes misturadas com o húmus molhado da madrugada, as pernas já domadas pelas raízes de uma árvores inerte. As histórias são o santuário onde encontramos os nutrientes da (como inventou Herberto Helder) “devastadora inteligência”.

28.1.11

Os canibais dos sentimentos

In http://2.bp.blogspot.com/_E4Iag6kYZDY/S7B9cZIGjTI/AAAAAAAAAQw/AupTlD8mByY/s1600/Lume+brando.jpg

Mote: aqui.
Não soubera sequer onde era o poente. Os olhos marejados pelo vento, um frio intenso que se esmagava no rosto, traduziam a angústia que o perpassava. Julgara que tinha aprendido. Julgara que os erros a montante eram o nutriente de que a renovada bússola precisava. Nada seria como o fora dantes. Agora já seria capaz de decantar a primeira demão da tinta que embota os sentimentos. Seria capaz de os depurar. Todavia, as tímidas lágrimas que o vento agreste e glacial derramava pelo rosto abaixo eram o sinal de que os planos são (como já soubera tantas vezes) um roteiro perfeito para o seu fracasso.
Estava diante de si, num promontório da existência, e notava que a insensibilidade se apoderara de tudo. Não era a planície que ambicionara. Ou talvez fosse, se a retrospectiva dos pensamentos rutilasse com nitidez. A cada passo em falso prometera que deixava de resistir aos canibais dos sentimentos. Àqueles fariseus que adejam, incansáveis, a lançar o hedonismo que desumaniza – dizem, ainda confiantes, os líricos da nobreza humana e dos edificantes sentimentos que ela destila. Uma e outra vez derrotara os cavaleiros da ímpia lividez das pessoas. Resistira ao deserto dos sentimentos.
Agora que se oferecera ao templo onde os canibais dos sentimentos preparam as suas mezinhas, cercara-o o arrependimento. Podia ser que as quedas no precipício que vêm depois da exaltação dos sentimentos selassem a vocação para a sua posterior ausência. Podia até ser que as cicatrizes abertas deixassem à mostra a impunidade com que vadiam os sacrílegos cavaleiros andantes que desensinam os sentimentos. Os ossos condoídos pelo voo livre no precipício, até o corpo beijar o solo duro, gritam a sua dor. É como se o precipício, todo aquele vazio que se embebe na mais profunda carne, fosse o lacre que sela, e com hermetismo, a janela que adestra os sentimentos.
Agora era diferente. Os canibais dos sentimentos tomaram conta de si. Não queria ser vítima dos expoentes da loucura servidos pela voragem de sentimentos. Os canibais fariam o seu serviço. Bactérias infiltradas nas veias percorrendo todo o sangue, adulterando-o. Ficaria esquálido, o sangue, uma matéria inerte servida no altar da insensibilidade. Sabia ao que ia quando a mão trémula bateu à porta do templo dos canibais dos sentimentos.
A operação de transfiguração fora demorada. Estivera anestesiado dias a fio. Um dos canibais dissera-lhe que a tarefa fora árdua. Que havia muitos nós a desfazer, nós anquilosados pela teimosia. Outros de uma resistência ímpar, sabendo que eram o último refúgio onde o sortilégio da insensibilidade perene podia ser derrotado. À medida que se desprendia do torpor do longo sono, fervia o desejo de experimentar a adulteração dos canibais dos sentimentos. Queria saber se conseguia a insensibilidade. Apressou-se na experimentação. A transfiguração fora perfeita. Aprendera uma rudeza que sempre fora estranha. Um utilitarismo que seria atroz para os parâmetros anteriores. Empedernido, nem perdia o sono entre as mágoas que deixaram de ser conhecidas. Tudo era como fora prometido. Como tinha demandado.
Contudo, naquele promontório da existência, numa esquina que o fizera resvalar num precipício inesperado, as lágrimas decantadas sopravam um outro arrependimento. Com pesar, ecoavam as preces que emprestavam mantilha a esse arrependimento. Queria saber outra vez o sabor dos sentimentos. Oxalá deixassem os canibais que estavam por dentro de si. E até as lágrimas derramadas dos olhos marejados vinham sem sal.

27.1.11

Roer a corda


In http://3.bp.blogspot.com/_-XvLtiVWiOE/TSzPLL8q50I/AAAAAAAAA54/d6-813eEBAk/s1600/corda2.jpg
Esbracejava. Furioso, ruminava impropérios a quem passava. Aos inocentes no estado de fúria que o consumia. Se houvesse retrato em jeito de metáfora, espumava aviltante raiva. E, todavia, não estava psicótico. Aquele enfurecimento era ocasional, epidérmico, com causa externa. Fora motivado por uma traição de compromisso. Era como se tivessem tirado o tapete debaixo dos pés, sobrando um solo gelatinoso onde os pés escorregaram fazendo-o tombar com estrépito.
Combinara negócio. Apalavrado. Queria, ao início, reduzir o negócio a escrito (como falam os palavrosos juristas, que podem ser gente maçadora, imersa numa desconfiança atroz, mas não são parvos). Do outro lado do negócio, um bem falante. Cheio de boas intenções, apessoado, parecia um lorde inglês. Mal podia desconfiar que era um charlatão profissional. E, das duas uma: ou o parlapatão tinha predicados de hipnotizador, tão bem o levara no engodo; ou ele próprio (que espumava a raiva dos atraiçoados) tinha embarcado no logro como só acontece aos ingénuos.
Estava furioso consigo mesmo. Extravasando a raiva para quem passasse em redor, como se os outros fossem culpados pelo ar de anjinho que foi enganado em duas golpadas pelo charlatão. Mas estava furioso consigo mesmo: como pudera ser tão ingénuo? Como se deixara levar pela ladainha do outro? Às interrogações, esboçava resposta com pesar. Não que servisse de consolo, que o grande mal estava feito e fora de tal arte que era irreparável. Servia, se tanto, como estúpido consolo interior. Interrogava-se: como podia adivinhar que um autêntico cavalheiro, detentor de uma pose donairosa e de vocabulário que distingue os instruídos, fosse um impostor encartado?
Tinha outra consolação interior (inútil, pois os danos estavam feitos e não ia ser ressarcido, tal a arte na marosca engendrada pelo simulacro de lorde): ele seria incapaz de burlar quem quer que fosse. Nem que fosse burla pequena, quanto mais uma com a sofisticação e o desassombro da que tinha sido vítima. E assim andou por dias a fio, esbracejando contra o resto do mundo e apaziguando-se interiormente. Julgava que os afagos que dava à sua desfeita auto-estima compensavam os prejuízos materiais da burla. Ao que parece, não aprendera nada. Agora era burlão de si mesmo com esta encenação caótica que tudo o que conseguia era uma ilusão infinita.
O desespero era sinal da quase ruína financeira. Quem o mandou não ter recato, que o negócio apalavrado prometia proveitos generosos, como se o saco dos ganhos não tivesse fundo. De resto, não consta que alguém lhe tivesse ensinado que nada é gratuito ou conquistado com o esforço de uma cigarra cantadora. Quando se aliviam as dificuldades da façanha, deve falar mais alto a desconfiança metódica. Agora, pagava o preço da avidez. Quis galopar na crina de uma negociata que lambia os limites da legalidade. Por infortúnio, o parceiro da comandita era um sabichão na arte. Um catedrático das falcatruas – veio a saber mais tarde, quando esbarrou, por coincidência e persistência, noutras vítimas de ardis da mesma igualha cometidos pelo mesmo lorde. Que se transfigurava noutras personagens acima das suspeitas.
Já não se pode confiar numa fatiota impecável envergada por gente com destreza no verbo. Convencera-se que estava treinado para não voltar a sucumbir à cilada de um grilo bem falante. Até que vieram umas eleições. Estava-se mesmo a ver que não aprendeu nada com gente habituada a roer a corda.

26.1.11

A grinalda do dilema (acto final)


In http://www.custodiogomex.com/images/2009/red-light.jpg
Os dias passavam e a angústia trespassava Arnaldo. As noites mal dormidas eram pasto para a cornucópia de pensamentos divergentes que o acossavam. Haveria de omitir a actividade da nova namorada do amigo? Fazia-lhe um favor, ou resvalava para uma covardia incompatível com a amizade de longa data? Pelo meio metiam-se outras interrogações que tornavam o dilema mais pungente: e se ela já não fosse meretriz de luxo? Assim como assim – reflectia, enquanto arranjava coragem para o silêncio – a cada um, o direito ao seu passado.
Mas das noites mal dormidas não tirava a lucidez partido. Como era frágil a linha que dividia as duas hipóteses. Havia alturas em que lhe apetecia fazer de conta que não sabia da actividade, por assim dizer, menos recomendável da namorada de Sebastião. (E como era sintomático que nem sequer lhe viesse à memória o nome dela, nem depois de ter ouvido Sebastião pronunciá-lo meia dúzia de vezes no almoço que tinha juntado os três.) Era assaltado por um duelo de diferentes moralidades. Ou era a moralidade que reprova a venda do corpo feminino, ou a moralidade que se abatia sobre si mesmo, a vergonha social (esse conceito usurário) de quem já experimentara esses serviços. Como odiava a moralidade, tão hipócrita como a hipocrisia que embaraçava a decisão.
Passaram-se duas semanas. As noites, que continuavam a ser mais em claro do que embebidas no sono, eram uma tortura. Estava irreconhecível. Nunca soubera o que eram insónias (sempre tivera o sono pesado). Ele, um bom garfo e já emagrecera por o apetite se ter ausentado. Começou a temer pela saúde. Tinha que tomar uma decisão. Uma decisão qualquer entre a meada que se embrulhava na embaraçosa encruzilhada.
Estava no auge das dúvidas quando, após uma noite em claro, uma decisão irrompeu com a violência da erupção de um vulcão. Decidira-se contar ao amigo. Às malvas os considerandos morais quando expusesse a fraqueza carnal que denunciasse de onde conhecia a voluptuosa namorada de Sebastião. Deixou-se tomar por uma outra forma de moralidade (e continuava a detestá-la, à moralidade, qualquer que fosse o seu timbre): estaria a trair a umbilical amizade por Sebastião se o deixasse no desconhecimento. Tomou uma resolução àquelas horas em que a alvorada se preparava para despontar. O encontro com Sebastião não passava desse dia.
Combinaram almoçar. Assim que se cumprimentaram, Sebastião perguntou se estava tudo bem, que havia notado tensão na voz de Arnaldo quando este lhe telefonara.
- Tenho uma coisa aborrecida para te contar. Andei este tempo às voltas comigo mesmo, a arranjar coragem para te falar nisto, retorquiu Arnaldo, com um ar macilento que preocupava Sebastião.
- O que vem lá? Qual é o assunto?
- A tua namorada...
- Ah! É o melhor assunto.
- Sabes...eu já a conhecia. Como te hei-de dizer isto?...Ela tem um anúncio nas páginas de jornal. A oferecer os seus serviços...estás a ver onde quero chegar?
- Eu sei. Como é que pensas que a conheci? Não és o único homem com momentos de fraqueza carnal (não é assim que lhe chamas?).
- ...
Perante a incredulidade de Arnaldo, o outro terminou a revelação:
- Talvez te desiluda. Deves estar a pensar que ela deixou a actividade. Enganas-te. Eu não tenho problemas com isso. Se gostaste do serviço prestado (e tenho a certeza que sim, tal a competência da rapariga), ela faz-te um desconto quando a requisitares outra vez.
O prato à frente de Arnaldo nem ia a meio e assim ficou. Cadavérico, sem reacção nem palavras, o resto do almoço foi de um silêncio fúnebre. Despediram-se. Sebastião temia que fosse a última vez que via o amigo. Este, agora mergulhado noutro dilema. O que fazer daquela amizade.

25.1.11

A grinalda do dilema


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjcWvQhihmopc1E1KPLw3Ph8DXrvWPAF60KmOvQe04js_41M8jre3jSvOmarqL0LlTYnyAwLDSCn973dyx4dr_bm-lW0HyAf8kHx22jLOLRhkoCBQzC4FlyG-NrGMzcUVWCUEUmhw/s1600/silencio-pernas.jpg
O Arnaldo não conseguia dormir há um par de noites. Era tanta a angústia que sentia uma pressão no peito de cada vez que uma golfada de ar entrava nos pulmões. Os amigos, vendo as notórias olheiras e o ar abatido, perguntavam pela razão. Refugiava-se no silêncio, ou mudava de assunto. Até o apetite (e logo o apetite!) perdera. Nos últimos dias esquecera-se de almoçar duas vezes.
Andava assoberbado por um terrível dilema. O seu grande amigo Sebastião tinha uma nova namorada. Antes das apresentações, o Sebastião, todo ufano, prometera uma namorada bombástica. Dizia-lhe: “vais ver, é um mulherão. Desta vez saiu-me a sorte grande”. Arnaldo, amigo incondicional dos poucos amigos do peito, estava exultante e curioso. Um certo dia, Sebastião telefonou a meio da manhã:
- Tens planos para o almoço de hoje?
- Não. Vou almoçar contigo?
- Nesse caso vais. Somos três. A minha namorada também vai. Quero que a conheças.
Marcaram local e hora. Como era hábito, o Arnaldo chegaria à hora e o Sebastião pediria desculpas pelo atraso sempre com culpas alheias. Desta vez a pontualidade do Arnaldo foi derrotada pela chegada antecipada do Sebastião e da nova namorada. Ao chegar ao restaurante, vendo os vultos de Sebastião e da namorada à distância, parou por uns instantes. A nova namorada do amigo tinha uma estampa invejável. Cabelos longos, escuros. Uma mulher alta. Notou as suas curvas acentuadas, as pernas reluzentes cruzadas em notória transpiração lúbrica. Sebastião ouvia-a falar, olhava-a com enlevo. Nunca vira tamanha expressão de encantamento no amigo nos longos anos de cumplicidade que levavam.
Aproximou-se da mesa. Apresentações feitas. A mulher, de uma beleza insinuante, Catarina era o seu nome, desfez-se em simpatias. Devia estar instruída pelo Sebastião (ou, não o estando, era inteligente): aquele era o seu melhor amigo. Arnaldo não conteve o interior abalo telúrico que o deixou lívido.
- O que tens, estás doente?, indagou Sebastião, atónito.
- Nada de especial. Ando com a tensão baixa. Ao sair do carro tive uma tontura. Deve ser por isso que estou pálido.
Não era por isso. Após uns curtos segundos de dúvida, Arnaldo não demorou a identificar a namorada do amigo. Umas semanas antes, num (por ele admitido) momento de fraqueza carnal, requisitara os serviços de uma acompanhante. Daquelas que se apregoam através de anúncios que enxameiam as páginas dos jornais de grande circulação. Era ela. Pelo seu à vontade, ela não o reconhecera (ele seriam tantos clientes...). Ou, tão dissimulada, mantivera a compostura para não decepcionar o (podê-lo-ia assim reputar?) namorado.
O almoço foi esquisito. A jovialidade de Sebastião, a babar orgulho pela mulheraça que engatara, contrastava com as poucas palavras de Arnaldo. Percebendo que podia causar mau estar, a certa altura desculpou-se:
- Não estou nos meus dias. Até o almoço não me está a cair bem.
- Isso é mesmo estranho em ti, tão bom garfo que és.
Não teve cabeça para o trabalho no resto do dia. Os pensamentos absorvidos pelo dilema. Haveria de confessar ao amigo que a esbelta namorada era uma luxuosa rapariga de programa? Estava sem saber o que fazer. Avisava Sebastião, anunciando a sua fraqueza carnal? Ou escondia-a, por vergonha, e deixava o grande amigo cair numa cilada?

24.1.11

Verdes anos


In http://users.isr.ist.utl.pt/~aguiar/landscapes.jpg
O corpo demorava-se na esplanada. Entardecia. Como parecia entardecer a vida que decidira passar em retrospectiva. Outra cerveja. A terceira. E já alguma névoa a misturar-se com os pensamentos introspectivos, metendo as manápulas no meio da lucidez. Enterrado na cadeira, olhava para o fio do horizonte indiferente a quem passava. Como se os olhos estivessem petrificados no embaciamento nostálgico dos verdes anos que resgatara às memórias.
A cabeça, num corrupio incessante, tropeçava na diferença do tempo. Da penumbra emergiam as recordações notáveis, só possíveis porque o corpo ainda não estava tisnado pelas sombras da idade. Embuchou outro golo de cerveja, sacudiu uma comichão da cabeça, olhou para a algazarra feita por meia dúzia de crianças que despenteavam o areal, e voltou aos profundos pensamentos. Os erros, as façanhas, as pessoas conhecidas, as viagens, as cidades com que aprendera a conhecer o que de si estava embotado. Amores e desamores. As gargalhadas entrecortadas por lágrimas. O lúcido ensandecimento juvenil, quando a responsabilidade era de uma espessura tão delgada. Os arrependimentos e os orgulhos pessoais. Coisas cheias de significado e outras, irrelevantes, que contudo subiam à memória.
A vida é sacana”, balbuciou no rescaldo de um turbilhão de recordações, com um suspiro terminal. Deteve-se no diagnóstico. Temia que estivesse a ser exagerado, injusto até. Se olhasse para trás, podia avivar os queixumes? O destino (ou os deuses, ou lá o que fosse) não tinha sido uma sorte madrasta. Mas era o corpo cansado, já incapaz dos mesmos feitos de outrora, o sono que reivindicava um lugar mais demorado nas rotinas diárias, as perdas de memória que ocasionalmente o fustigavam – tudo somado fazia-o mergulhar nas catacumbas onde estavam embalsamados os verdes anos que desataram o acosso melancólico.
Amigos da mesma idade diziam-se resignados. “O imparável envelhecimento depura as fragilidades de outrora”, dissera-lhe um, dias antes, enquanto sorvia um gole de vinho tinto, imerso na certeza da afirmação enquanto os olhos se perdiam nas funduras do largo copo que o vermelho forte não deixava ver. Ou o lugar-comum que agora dizemos em aniversários: “ao menos já aqui chegámos” (como quem diz, sem todavia soletrar essas palavras: “a muitos não foi dado esse privilégio”).
A nostalgia teimava. Encomendou a quarta cerveja, os olhos cada vez mais ofuscados pela mistura do álcool e da penumbra do entardecer. Tanto recusava a resignação do entardecer do corpo como lhe doía resgatar os fragmentos cuspidos pela teimosa nostalgia. Na encruzilhada, era o dilema que mais dor causava. Ora se inclinava para a recusa do tempo, como se os verdes anos tivessem uma perenidade indesmentível. Ora caía em si, à volta do seu corpo desfigurado, os traços custosos de que a perenidade não é indesmentível.
Acertou a introspecção com algumas interrogações lapidares: de que servem os devaneios nostálgicos? Resgatam o tempo ido? Rejuvenescem o corpo cansado? Podiam ser dolorosas, as interrogações. As respostas, em forma de acalmia condescendente, eram analgésicas. Três nãos que, por uma vez, eram o oposto do niilismo. Três nãos à mão de semear, tão construtivos.

21.1.11

Canto do cisne


In http://pugetsoundblogs.com/kitsap-crime/files/2008/11/handheld-gun.jpg
O Sidónio pulava de manigância em manigância, sempre com o maior esforço em não ter esforço algum. Era um malandro, um astuto servidor da preguiça. Estava perto dos trinta anos e nunca se lhe conheceu actividade profissional. Uns biscates aqui, outros ali, às vezes segurança em discotecas (tinha que fazer render o físico avantajado que agradecia a deus nas preces diárias). Uma vez foi guarda-costas de um magnata russo que andou pela cidade a instalar uns negócios duvidosos.
As manhãs eram mentiras pegadas. Acordando a horas em que já muita gente deixava a amesendação vespertina, começava o dia com um lauto manjar. Sempre em restaurantes. Quando estava abonado, restaurantes de qualidade. Quando as lecas debaixo do colchão mirravam (que o Sidónio tinha uma desconfiança genética dos bancos), fazia a ronda pelos restaurantes dos amigos que lhe deviam um ou outro favor, ou daqueles que tinham rabos-de-palha presos ao conhecimento do Sidónio.
Como era ambicioso, a cada empreitada que se saldava em proventos generosos o Sidónio subia a fasquia. Em conversas com os mais íntimos, gabava-se de ser precatado. Os íntimos reconheciam-lhe uma fina inteligência (para os parâmetros médios da vilanagem do meio). Quando um deles montava um esquema que intuía ganhos fáceis, pedia-lhe conselhos. Era o cérebro da súcia. Metódico, o Sidónio era um pensador. Planeava as golpadas. Fazia como os arquitectos: sentava-se num estirador (que um comparsa roubara a um arquitecto) e esquematizava o plano. Rasurava-o quando notava fragilidades. Antes de o tornar definitivo reunia os íntimos, a sua massa crítica, para ter a certeza de que o plano teria um parto fácil.
Há três anos que se metia em aventuras de outro calibre. Enfiava-se num avião para S. Paulo. Passava uns dias com a concubina que aí mantinha. Mulher conhecedora dos grandes traficantes de cocaína. Ficou embeiçado por aquela morena curvilínea de uma vez que ela veio ao Porto. “Em negócios” – contara à família. A tórrida paixão alinhavou ambiciosos planos: ser correio de droga de um lado para o outro do Atlântico. Não queria continuar a sujeitar a amante aos riscos da actividade. E, afinal, dando o corpo ao manifesto os seus proventos eram maiores.
Já fizera nove travessias sem o incómodo das autoridades. Passava na alfândega pelos cães farejadores. Os balões de cocaína que a concubina lhe enfiava como supositórios estavam fora do alcance do faro treinado dos cães. A décima travessia seria especial: a concubina vinha de vez. E também trazia uma dose no ventre, que desta vez o carregamento era abundante e convinha apressá-lo, o que exigia a repartição da carga pelos dois. Se tudo corresse bem, era a última vez que atravessavam o oceano com droga nos intestinos (a menos que a última vez acabasse por ficar adiada por causa de imponderáveis, ou da ambição embriagante). Faltava um hora para o avião aterrar. Só uma hora e tudo desabou! Ela ficou indisposta, empalideceu, contorceu-se com dores agarrando-se à barriga. Vomitou sangue que respingou nos bancos da frente. As hospedeiras não ficaram em pânico. Pareciam treinadas para a eventualidade. Deram-lhe um comprimido e ela sossegou. O Sidónio estava encharcado em suor. Adivinhava o desfecho.
Mal saiu do avião, tinha à espera uma ambulância e uma comandita de polícias empunhando artilharia pesada. A brasileira foi de ambulância. Ele, algemado, também foi ao mesmo hospital. Sob custódia policial. A radiografia que tentou impedir com violência denunciou-o. Caiu, cabisbaixo, numa cadeira do hospital sob vigilância próxima de três agentes. Que terrível canto do cisne. Ainda não tinha trinta anos e, à frente dos olhos, desfilava uma demorada estadia na cadeia.
Do mal o menos, a concubina não resistiu às hemorragias internas.
(Em Serres, França)

20.1.11

Um conto infantil


In http://fc08.deviantart.com/fs47/f/2009/209/5/4/aldeia_de_xisto_by_Ponto_Zero.jpg
Lá nas terras pedregosas do norte, numa aldeia escondida dos faróis do mundo, vivam só três crianças. O resto eram os anciãos curvados por tantos anos de amanho da terra, as suas rugas profundas o atestado dos pesadelos dos petizes. As criancinhas viviam longe das fantasias da tecnologia. Pouca televisão, e apenas os canais que dispensavam o cabo que não beijava a aldeia ou as antenas de captação do sinal por satélite proscritas pela assembleia dos chefes de família (não fossem afear casario tão harmonioso). Como nem havia computadores na aldeia, Internet era palavra desconhecida.
Dir-se-ia que as três crianças (dois rapazes e uma menina, todos à volta dos sete anos) viviam em pureza. Aprendiam o que havia a aprender na escola para onde iam ainda a madrugada deixava um demorado rasto nocturno nos dias de invernia. Entretinham-se nas brincadeiras que o foram em tempos ancestrais, na geração dos avós e bisavós dos outros meninos que vivem nas grandes cidades.
Um dia, um homem esquisito foi encontrado a vaguear pelas ruas. Trazia o nariz empinado ao alto, a cabeça esvoaçando a sua curiosidade de um lado para o outro. Tomava notas num caderno pequeno. Os aldeões, incomodados com a deambulação, seguiam-no à distância. Primeiro com os olhos. Depois mudando de lugar, quando o homem avançava nas estreitas ruelas da aldeia e ficava fora da vista. Os meninos acompanhavam quatro dos anciãos mais respeitados na aldeia, que logo foram convocados a vigiar as movimentações do intruso que descompunha a serenidade do lugarejo. O forasteiro, mal educadamente, não dirigia palavra aos aldeões. Nem um mero “bom dia”.
Ao cabo de um bom par de horas, os meninos desprenderam-se da timidez. Já não estavam assustados com as feições esquisitas e com a roupa escura e justa ao corpo do homem. Apanharam-no numa esquina da aldeia, onde a rua faz um degrau tão inclinado que os petizes ficaram num plano mais elevado, como se fossem mais altos que o longilíneo forasteiro. Começaram as perguntas, de rajada: “o que vieste cá fazer?”, “quem és tu?”, “de onde vens?”. O homem, solícito, respondeu às duas últimas. Julgava que a afabilidade e uns rebuçados distribuídos (e prontamente recusados) serviam para o esquecimento da primeira interrogação. Enganou-se. A menina repetiu a pergunta: “o que vieste cá fazer?”, e enfatizou-a, sem se deter: “por que andas a ver as casas todas?
O homem ajoelhou-se diante das crianças, notando como de ambos os lados, a pouca distância, já havia olhos curiosos em pose testemunhal.
- Vou contar um segredo. Prometem que não dizem nada a ninguém?
As crianças anuíram com a cabeça e mudaram o rosto, que a curiosidade desata outro estado de espírito. Depois de uma pausa, o homem sussurrou enquanto abria uma pasta cinzenta:
- Gostavam de viver nestas casas tão bonitas e tão cheias de cor? Lá têm tudo de que os meninos gostam.
Da pasta cinzenta caíram umas folhas estranhas, cheias de desenhos a lápis, com números encavalitados uns nos outros. Um dos meninos, mais avançado na leitura, conseguiu ler as letras maiores no cabeçalho de uma das folhas: “barragem – projecto”. Gritou para o avô que estava a meia dúzia de metros:
- Avô, avô, este homem vem da parte dos da barragem. Vamos-lhe bater?
Quando o engenheiro cheio de instrução conseguiu sair da aldeia com umas nódoas negras espalhadas pelo corpo e uns galos na cabeça depois de tanta paulada, mais o inchaço na mão direita por causa da ferradela de um dos rapazes, percebeu que nem sempre são as crianças que jogam o papel do ingénuo.
(Em Valence, França)

19.1.11

Crónica bem disposta


In http://www.be-extreme.com/site/images/smile.jpg
(Será dos ares pré-alpinos – que eles não estão longe daqui – ou da companhia dos bons amigos. Não há crispação que amedronte estado de espírito tão leve. Nem motivo que escureça ares tão aliviados. Às vezes, estar longe de casa é terapêutico.)
Esta é uma crónica bem disposta. Ou pretende sê-lo (que uma coisa é a intenção, outra bem diferente é se a intenção se traduziu em coisa palpável, com merecimento). Lembro-me de disparates. Alheios e sobretudo pessoais. Lembro-me de piadas que ficaram emolduradas num recanto da memória. Lembro-me daqueles momentos inesquecíveis, os que fizeram brotar das entranhas um pedaço de amadurecimento. E não me apetece lembrar de todo o seu contrário. Chame-se-lhe estado de negação. Temporário que seja, mas estado de negação. Ele próprio terapêutico.
Está é a crónica de um homem jovial, imaginado, que carregava um sorriso perene. Não via maldade em coisa nenhuma, em acção nenhuma praticada por gente. Tudo era pontuado por uma bondade intrínseca. O homem acreditava que todos os dias eram um espelho bonançoso da sua repleta interioridade. Uma fé inexcedível na capacidade da espécie humana para a positividade de todas as coisas. Mesmo das más, das que trazem um selo dramático – que essas, na maior parte das vezes, só são melodramas. Uma cortesia infindável acompanhava-o por onde fosse. Um cavalheiro para as senhoras (o que já lhe valera contrariedades espumadas por feministas enraivecidas). Era a antítese dos mestres na desconfiança que abundavam à sua volta.
Faltava saber se era tudo isto por genuína têmpera ou por uma vontade indomável de querer ser diferente. Os desconfiados por natureza desconfiavam das suas boas intenções. Achavam-no um embuste, um actor que merecia ser premiado pelos dotes de dissimulação. Desconfiavam, até, que fosse a pessoa menos confiável de todas. Por não conhecerem ninguém, na roda do seu mundo particular, tão desapaixonadamente optimista, tão crente na bonomia da espécie humana. Só podia ser um embuste – insistiam, antes de fatalmente o vilipendiarem, os apoderados da desconfiança que transitavam pelos lamacentos carris do cepticismo.
Apedrejado, escorraçado como um cão sarnento, o homem persistia. Alguns, misturando desdém com comiseração, julgavam que ele não se desprendera da imberbe ingenuidade. O homem passava por tudo isto com indiferença. Sem se mover, um milímetro que fosse, como se as facas que caíam em cima dele não fossem cortantes. Regressava aos que o apoucaram como se nada tivesse acontecido. Com o mesmo sorriso, a mesma predisposição para o bom trato, a mesma confiança que não parecia tingida pela desconsideração. Os outros ficavam perplexos, desarmados. Interrogavam-se: como era possível o homem dar o lombo outra vez, o mesmo lombo que tinha sido severamente castigado ainda ontem?
Uns seguidores de uma religião qualquer, minoritária, saíram da toca. Não se sabia como tinham travado conhecimento com o homem. Ao início, ficaram tomados pela mesma perplexidade que se abatera sobre os algozes daquele homem. Tinha que haver um outro ângulo para espreitar o caso – acreditavam, nunca desistindo de um messias qualquer que viesse salvar um mundo no limiar da desesperança. O homem era a reincarnação de Cristo. O que foram fazer! O homem transfigurou-se. Sentindo-se insultado com a comparação (ou pior: que aquela seita acreditasse que ele reincarnava o Cristo de antanho), embebeu-se de tudo o que era o seu oposto. Encolerizou-se com a força de mil Satanás.
E os prosélitos que à força nele viam o prometido messias foram esbulhados pelo demónio em pessoa.
(Em Valence, França)

18.1.11

A cidade desbotada

In http://blogmaneiro.com/www/blogmaneiro.com/wp-content/gallery/paisagens-em-preto-e-branco/paisagens-em-preto-e-branco-2.jpg
Seria do nevoeiro impenitente que reiterava nos dias constantes. Seria do granito amontoado nas escarpas, o granito das casas antigas que saltava aos olhos, ferindo-os com a aspereza das suas arestas. Ou da gente sombria, compenetrada na sua tristeza, a gente gelidamente arredia dos visitantes. A cidade era um retrato a preto e branco. Sucessivos retratos onde as cores estavam ausentes. Uma cidade desbotada.
Os turistas, os poucos turistas que desaguavam na cidade, sabe-se lá atraídos por que predicados que não punham a cidade em roteiro turístico algum, todavia encantavam-se com as tonalidades extravagantes. Por mais que teimassem em capturar as cores da cidade, a luz embaciada que se abatia sobre os dias coalhava as cores. As fotografias, tal como a cidade, saíam a preto e branco. Em diferentes cambiantes de preto e branco – ora a escuridão medonha dos becos estreitos, onde não entrava vestígio de luz; ora um acinzentado claro que decantava a luz do sol. Nem os telhados, que podiam emprestar a vivacidade do avermelhado das telhas, ou as copas das árvores enfeitadas com o verde garrido da primavera, transbordavam essas cores para os retratos.
As ruas estreitas, alcantiladas, com o piso irregular das pedras ancestrais e frias. As avenidas largas, que um assomo de modernidade trouxera algures no passado. O rio, um pardacento caudal que vogava na sua modorra, sem pressa de desaguar na foz. Os jardins tristonhos, que jardineiro algum semeara de flores. Tudo avivava a ausência de cores, como se naquela cidade nunca tivesse havido visitação do arco-íris. Os olhos das pessoas, a condizer, inertes na imensidão. Pareciam autómatos, indiferentes a quem passava, nem que fosse o turista mais bizarro que descesse à cidade. Os habitantes haviam sido contagiados pela frieza da cidade desbotada. Levavam uma vida descolorida.
O turista errava pelas ruas da cidade desbotada. As casas sombrias, que aqui e ali deixavam à mostra a imensidão de granito. Os edifícios públicos, altares de uma austeridade ímpar. As escolas, que mais pareciam gavetões fúnebres onde se enfiam as crianças para a instrução necessária para o porvir da cidade. E o turista desatava a sua perplexidade: por mais que errasse pelas ruas entristecidas, por mais que se cruzasse com rostos invariavelmente imóveis, não discernia um esboço de sorriso. Os habitantes tinham o sorriso desbotado.
E, porém, a paradoxal condição da cidade desbotada era a inexplicável atracção que gerava (mas não ao turista convencional). Eram turistas estranhos, impassíveis como a cidade dormente, que se extasiavam com os encantos escondidos da cidade. Aquela cidade mortiça não estava nos roteiros turísticos – já foi dito. E não havia dia sem que um turista impassível percorresse as ruas, sempre com o olhar enfeitiçado a vaguear de um lado para o outro, a câmara fotográfica a disparar sucessivos instantâneos que pariam fotografias a preto e branco. Desbotadas. Como a cidade embaciada numa luz franzina que impacientava as cores reprimidas.
A cidade desbotada desafiava as convenções. Por causa dela, três escritores, em três diferentes idiomas, ganharam fama. A cidade deixara de ser desbotada. 

17.1.11

Apologia das manhãs


In http://sitedepoesias.com/imagens/poemas/8844.jpg
Ah, as alvoradas, como são frescas. Desbloqueiam o torpor que se consumiu no sono da noite. As noites escondem os sonhos, ou os pesadelos ininteligíveis. O corpo renova-se com a primeira claridade da manhã, que o liberta da ansiedade dos pesadelos. Pelos dedos matinais entra no corpo um aluvião que o levanta para o dia pleno, para o dia no seu esplendor.
Nunca entendi aquelas pessoas que desdenham da manhã. Desperdiçam a frescura da alvorada entrando com o sono pela manhã dentro. Quando chegam ao dia já ele vai alto. Gasto. A essa hora em que se adianta o entardecer, já foram dissolvidas as propriedades mágicas de um começo. Eu sei que se dizem noctívagos, que são capazes de discorrer sobre o encantamento da noite, da coreografia das luzes que incendeiam a cidade febril. Os que se prolongam pela noite fora também conhecem a alvorada. Ela chega aos seus olhos enquanto se fazem a casa, já cansados.
Eu digo que lhes falta lucidez para captarem toda a frescura que se põe numa alvorada. Digo: que perdem o mais belo da manhã, a sucessão de minutos e horas que desvela as cambiantes das cores à medida que o sol é içado a caminho do firmamento. E, no entanto, andamos nas ruas quando o relógio anuncia que é muito cedo e os rostos acabrunhados avivam a contrariedade da maioria que se entrega à manhã.
Nos começos, como por exemplo nos começos dos dias, está retida a pureza dos significados, como se fosse necessário enclausurar nos dedos a ingenuidade latente que vem agarrada às coisas. As manhãs reproduzem essa grandeza. Os ponteiros do relógio desgastam-na. A sua cadência compassada, aritmética, sinaliza o envelhecimento do dia. O seu cansaço traz outras cores, não direi menos encantadoras; mas de um encantamento diferente, sem as luzes decantadas que se revelam na alvorada, ou mesmo as luzes baças quando a alvorada destapa o nevoeiro denso que se demora pela manhã fora.
É intrigante como uma expressão – “é muito cedo” – é depreciada pelos costumes dominantes. É tão extemporâneo chegar cedo como tarde, mas os costumes mandam ser mais tolerante com os que se demoram para além da hora combinada. Insuportável é chegar mais cedo. Talvez se possa fazer a ponte com as manhãs vilipendiadas. Acordamos e, ainda estremunhados pelo sono interrompido a contragosto, dizemos que ainda é muito cedo. Depois valem os relógios biológicos de cada um: há diferentes alvoradas pessoais. Por dentro das medidas relativas, um acordar cedo pode ser tardio para outra pessoa. Mas quem nunca disse, quando os olhos se libertam da opressão do sono, “é muito cedo”? Eis a carga adversa da alvorada: é por essa altura que é cedo.
A cidade quase deserta que desponta na companhia da alvorada revela os seus segredos. Eles estão obnubilados pelo frenesim das horas mais tardias, quando as ruas são tomadas de assalto pela multidão apressada, a multidão sempre atrasada. Pela alvorada, quando a luz irrompe ainda intimidada pela noite poderosa que tinge o céu, decantam-se as cores. O ar parece mais leve e as poucas pessoas que andam na rua não ostentam o ar contrariado de quem foi arrancado à cama. É a essa hora matinal que os cantos das aves podem ser apreciados antes de elas se esconderem nos ninhos, assustadas pelo bulício. Antes do seu chilrear ser suplantado pelo ruído intenso da cidade que vem para a rua em surdina.
A manhã desgasta-se. E não é pelo andamento dos relógios, que prenunciam o entardecer que emprestam rugas cansadas ao dia. A manhã é desgastada pela multidão que sai às ruas.

14.1.11

A um metro do abismo

In http://www.atarde.com.br/arquivos/2008/04/29841.jpg
Resoluto. Avançava sem medo por entre os arbustos rasos que escondiam as pedras esgaçadas. A boca secara-se só com a ideia do terreno se perder numa quebra abismal. Lá em baixo, ainda sem o ver, sentia o mar tempestuoso a esbracejar a sua fúria, as ondas majestosas despedaçando-se contra as rochas. Avançava, tão temerário como lento, no topo do promontório que encimava o cabo agreste. O vento estava a preceito, alisando os cabelos para trás, esfriando o rosto, as rosáceas esquálidas por serem esmagadas pelas constantes descargas do vento.
Teimoso. Avançava numa dissonância interior. Era como se as pernas tivessem vontade própria, emancipadas do bloqueio mental que estancaria o passo. Quanto mais o corpo arremetia pelo promontório e se revelava o som das ondas do mar a esmagarem-se nos rochedos, mais tremia num pavor todavia sossegado. Os pés arrastavam-se, lentos, tomados pelo pânico das vertigens. Naquele dia estava dominado por um obscuro desejo de espreitar o precipício. Já fora de outras vezes àquele local e estancara o passo onde as autoridades impediam a passagem com uma cerca e um aviso dissuasor.
Audaz. Hoje o aviso não o iria dissuadir. Sentia uma pulsão irrefreável para avançar até onde o risco gritava a pulmões abertos. As pernas, todavia trémulas, prosseguiam a marcha, cada vez mais próximas da cerca. Àquela hora, ainda tão madrugada, não havia ninguém por perto para o deter. Um frio arrebatador invadiu o corpo. Ao mesmo tempo, as pernas com vontade própria, sem se deterem, imprimiam o ritmo da vontade ensandecida. Não era coragem o que o movia; era uma curiosidade dir-se-ia mórbida, uma insensatez pelo risco suicidário que impelia as pernas na sua marcha imparável.
Destemido. Não parou nem quando chegou à cerca e os olhos se cruzaram pela última vez com o anúncio que proibia a passagem. Não houve uma hesitação sequer. As pernas congeminaram os movimentos mecânicos de quem trepa um obstáculo. Parou por uns instantes só para olhar para trás e comprovar a bravura. Às outras pessoas só lhes é dado ver a cerca do lado de lá. Orgulhoso com a façanha, ele que tantas vezes se convencera da sua covardia, retomou o passo rumo ao precipício. Estava determinado a conhecer os mistérios impedidos pela passagem vedada. Queria saber como se esmagam as ondas do mar no amontoado de rochas erodidas que se escondem na curvatura do precipício.
Lúcido. Avançou até faltar um metro para o abismo. Os bloqueios mentais entraram em piloto automático. Alguns calhaus resvalaram pelo precipício, ecoando uns segundos depois o seu escorregar pelo precipício abaixo até mergulharem na água espumosa do mar. Dali já conseguia espreitar a curvatura do precipício. Notava a erosão das rochas escurecidas. As pobres rochas, desprotegidas, consumiam-se com o tempo e com as constantes investidas das ondas que ali se esmagavam. Olhou no firmamento, a poente, onde o céu escuro ainda não testemunhava a alvorada que já despontava atrás das costas. A brisa agreste parecia alimento.
Rejuvenescia. Aclarava o discernimento. Umas horas antes, tomado pela raiva e pelo desespero, outras intenções se levantaram. Agora que estava a um metro do abismo amedrontou-se. O firmamento crepuscular, a imensidão do mar encapelado, as tímidas luzes das traineiras que terminavam a faina, tudo isto fez estancar o passo. Ficou ali tempo sem contar, até no poente o céu se aclarar. Quando deu conta, duas gaivotas em ruidoso chilrear acordaram-no. Estava a um metro do abismo. Assustado, apressou o regresso a um lugar seguro. 

13.1.11

Bruxos e “mulheres da vida”


In http://comunidade.sol.pt/photos/pscgf/images/852568/original.aspx
Li algures que os bruxos romenos prometeram cruéis maus olhados porque o governo aumentou os impostos que eles pagam. Mas quem gosta de suportar impostos mais caros? Ontem, ao pagar a bateria do automóvel que substituiu a que vinha de origem e chegou ao fim dos seus dias, o funcionário do concessionário olhou para o papel e doeu-se por mim (uma simpatia inexcedível). Ao mesmo tempo que acenava com a cabeça, lamentou: “vinte e cinco euros só de IVA. Isto é um roubo!
Tenho pena de não possuir os dotes premonitórios dos bruxos romenos para anunciar, a quem quisesse ouvir, a data do funeral deste funesto governo. Se fosse bruxo (ou, o que é mais importante, se acreditasse em bruxarias e seus cozinheiros), até me seria dado o prazer de descarregar a ira com um mau olhado ao ministro das finanças e ao seu chefe, o mais improvável personagem que alguma vez foi primeiro-ministro (já contando com Santana Lopes). Acontece que nem que fosse bruxo puxava lustro à vingança, pois (julgo) não é característica que resida em mim. Mas lá que este governo inepto merecia um colectivo bruxedo que apressasse o seu decesso, que isso ao menos seja verbalizado. E para o resto da conversa não desaguar na lengalenga habitual (como é fácil, em austeridade necessária, martelar mais na tecla do sacrifício fiscal), vou regressar aos bruxos romenos.
A actividade é, ao que li, próspera na Roménia. Tanto que merece um código só para si, daqueles que identificam as profissões para a aplicação de impostos e de registo contabilístico. Como a austeridade é palavra que estala na boca da gente pelas quatro partidas do mundo, o governo romeno convocou os bruxos profissionais a assumir uma quota-parte na austeridade que por lá aterrou. Os bruxos não gostaram (e repito: quem aceita, sem um esgar de dor, um aumento de impostos?). Vão reunir em conclave, que terá que ser secreto, para de lá sair um gigantesco e poderoso mau olhado que terá efeitos devastadores para o governo local.
Ao ler esta notícia muito idiossincrática, emergiu uma comparação que deitou mão a um cenário imaginado. Supus que finalmente a hipocrisia social tivesse sido derrotada e a mais velha profissão do mundo passasse a ser legal. Em vez de as mulheres (e homens, que também os há; mas vou apenas falar das mulheres) andarem aos caídos em bordeis imundos, ou em condições deploráveis nas ruas e esquinas das cidades, fugindo à polícia que ora fecha os olhos, ora decide punir a actividade porque o agente de serviço acordou mal disposto, tudo seria legal. E as mulheres que se entregam à prostituição passavam a pagavam impostos.
(Eu sei que alguns, mais zelosos com a moral e os bons costumes, dir-se-iam repugnados ao saberem que uma obra pública ou um mero subsídio público eram alimentados por impostos que, entre outras origens, vinham do dote entregue pelas mulheres da vida. É a vida! E só me admira que entre a prolífica criatividade dos engenheiros dos impostos, ainda ninguém tenha tido a coragem de vergar a hipocrisia social, tributando quem exerce a actividade.)
Retomo o cenário imaginado: e se, no meio da voraz austeridade, as meninas e senhoras que vendem o corpo fossem obrigadas a pagar mais impostos e não concordassem com o seu quinhão nos sacrifícios a que somos sujeitos? E se elas reagissem com um mau olhado à sua maneira, como se fosse uma greve de zelo, ousando fechar as portas (eufemisticamente falando, pois) por um período indeterminado? Qual seria o pior mau olhado: o dos bruxos romenos, ou este zarpado pelas revoltadas mulheres da vida?

12.1.11

Gerontocracia


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjVWGGq3fLXbZboAbDDkawJQPUPj4NTTquwhtE9PLq0qfGpMYn_clW1Od9AG_AIQa8q1HJa0_c14GMPTauiEosaLE3RHNoh2TAzjSTKo8nVZOBfN7HnSXKm8MjB-emZ4i8M6ty_/s1600/marretas61.jpg
E se as regras fossem alteradas e só maiores de 65 anos se pudessem candidatar a presidente da república?
Como vendo sendo habitual nos últimos anos, afasto-me da televisão quando uma campanha eleitoral entra em ponto de rebuçado. Desta vez, só tenho acompanhado a inútil campanha para uma inútil eleição através dos jornais que não consigo deixar de ler. Eis o estado da paisagem: meia dúzia de jarretas que deviam estar em casa de pantufas a gozar a reforma (excepto dois dos candidatos nos quais, me parece, as rugas dos bilhetes de identidade ainda não dão direito à reforma: o camarada comunista e o madeirense que é um Manuel João Vieira de vão de escada). É de louvar, em todo o caso, que os candidatos em avançada idade consigam ser globetrotters do asfalto, palmilhando quilómetros atrás de quilómetros até à próxima acção de campanha, até ao próximo “banho de multidão” (ou nem tanto). E como devem ser cansativos os “banhos de multidão”.
Eu sei que arrisco a acusação de ostracismo social, ou sofisticado “fascismo social” se os cânones dos sociólogos à la Prof. Boaventura tivessem autoridade bíblica. Sei que me podem acusar de mau gosto por assinalar como esta eleição está dominada por candidatos gerontes. Perguntarão: e há algum mal nisso? Podemos excluir candidatos de provecta idade, apenas porque uns mal dispostos (entre os quais possivelmente me incluo) se incomodam por uns corajosos anciãos deitarem o peito às balas querendo ser presidente da república? Podem-nos ensinar, esses sensatos, que o cargo tem uma espessura de solenidade, que não exige muita intensidade de trabalho. Uma espécie de reforma dourada, ou o coroamento de uma carreira política para a personagem que sair vencedora das eleições. Esses sensatos até podem notar que o cargo exige uma ponderação que só está ao alcance de quem tem muita tarimba, o que não acontece com os mais jovens.
Nesse caso, porque não se altera a idade mínima para ser presidente da república? Eu diria 65 anos. Agora era altura de pedir ajuda aos colegas politólogos, talvez com uma mão de historiadores da contemporaneidade, e atirar a seguinte pergunta: há quanto tempo não se candidata alguém com menos de (e já nem vou ser exigente na fasquia) 50 anos? Parece que há uma proibição implícita para que gente mais jovem, ou pelo menos não tão velha, avance com uma candidatura ao cargo. Se me acusam de ostracismo dos velhos por estar contra a gerontocracia dominante, será que a acusação não se vira do avesso por os mais novos ficarem sem tapete se aspiram à mais elevada sinecura?
As regras cristalizam costumes (ensina-se aos estudantes de direito). Se a proibição implícita dos mais novos (desde que tenham mais de 35 anos) parece enraizada entre os sapientes fazedores de opinião, por que não se alteram as regras subindo a fasquia da idade mínima para os concorrentes à eleição presidencial? Não interessa que haja gente menos sensata (eu, por exemplo) que reclama sangue novo, que gente mais nova tome o protagonismo dos gerontes de má memória que são a oligarquia dominante. Somos uma minoria, e às minorias não se dá ouvidos. Assim como assim, é por falta de sensatez (como a que desfilou neste texto) que os trintões, quarentões e cinquentões não devem cometer a ousadia de se candidatarem a presidente da república. O cargo não lhes cai bem, por falta das rugas necessárias no bilhete de identidade.