30.12.11

O justo em vez do pecador


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhG-xAJ_IAM-w4CC3Z-_z9838LVxPiH_CkHPW5yLeAiry3ddqVDVeAhBd2DSgITs9VPb_hLjq6OMI7c1HidmF8VsXCUz5q22pszo1TXD3N78hNSE2NijmCuslcrkPWgNJoH6ubf/
O governo tenciona penalizar os progenitores pelas tropelias escolares da prole. Chicote a montante, portanto. Os estroinas portam-se mal e a escola vai pedir responsabilidades a casa deles, a quem os pariu. É que os petizes deviam ter sido bem educados. Se os progenitores se demitiram da função, que apanhem com o ónus das malfeitorias que a descendência anda a espalhar pelas escolas.
Se a moda pega de estaca, as responsabilidades de cada um vão ganhar raízes profundas. É agora que o adágio “a culpa morreu solteira” vai berrar a pulmões abertos. Haverá sempre maneira de endossar a culpa lá para trás, sempre bem mais para o passado remoto, quando o homem de Neandertal transportava carinhosamente a consorte pelos cabelos.
As tropelias escolares devem ficar impunes? Nem tal coisa podia passar pela cabeça (que não sou sociólogo com pronta explicação para os comportamentos desviantes, pois a sociedade ou a família são os culpados pelas amibas que criaram; ou psicólogo em desmultiplicadas justificações para um comportamento que nunca é anómalo). Daí a passar para a geração anterior as culpas pelos desacatos da descendência vai um abismo. Talvez aqui falem mais alto os rudimentos de jurista fracassado que, todavia, ficaram enquistados. E se os princípios das leis mandam selar a responsabilidade dos comportamentos a quem os comete, como se pode pedir contas aos pais pelas travessuras dos filhos? Pra piorar o diagnóstico, algumas famílias cheias de pergaminhos despejam a prole na escola com indicações para maltratar os professores se eles aborrecerem muito. Como se pode pedir responsabilidades aos papás, se eles não fazem ideia da serventia da escola e da grotesca educação doutrinada lá em casa?
Mas se a moda pega de estaca, um dia destes só os inimputáveis e os menores de idade é que não estarão a contas com a justiça. De resto, não sobrará quase ninguém sem dores de cabeça com a justiça por causa dos atos levianos dos meninos e das meninas que pariram (tirando o clero, os homossexuais que ainda não podem adotar crianças, os casais sem propósitos de deixar descendência e os que ficaram para eternos celibatários).
Pelo andar da carruagem, haverá muitos progenitores arrependidos de o terem sido. 

29.12.11

Se eu fosse feminista escrevia este texto (e sua réplica, se não fosse)


In http://aeiou.exameinformatica.pt/iv/0/50/144/comando-tv-televisao-fb7f.jpg
O moderador entrega a caneta à feminista (e ainda se nota a caligrafia trémula, os pontos nos i postos com a fúria de quem digere mal ofensas à mulher)
Uma empresa que vende televisão por cabo, internet e telefone anda a mostrar um anúncio que tresanda a mau gosto. Uma parelha infeliz dá a cara e a voz. Um ator com longas credenciais de conquistador de mulheres e uma menina sugestivamente vestida em constante pose provocadora (das hormonas masculinas, entenda-se). Apesar de emprestar a voz para um trocadilho desonroso da condição feminina, a insinuante menina empresta colorido ao anúncio com o corpo escultural ataviado num vestido três tamanhos abaixo do seu.
(Comentário do moderador: onde se nota alguma inveja da feminista. Ela só consegue envergar roupas largas)
Enquanto o ator discorre as “ofertas” (como se o capitalismo conseguisse oferecer coisa alguma), a menina dá a sua achega com o trocadilho lesivo da condição feminina. E meneia-se, lúbrica, desatando o imaginário dos ingénuos homens já com as hormonas aos saltos, sonhando acordados com o que fariam se aquele pitéu estivesse a um palmo de distância dos seus braços (e do resto).
(Comentário do moderador: onde se nota uma distração da militante feminista, traída pelas suas próprias hormonas em ebulição)
Está provado (se ainda mais provas fossem precisas): o capitalismo anda de braço dado com a insultuosa desigualdade dos sexos. Se um deus houvesse e justiça divina também, aqui se escrevia direito por linhas tortas. Só os homens é que perdem a cabeça por mulheres curvilíneas, transpirando lascívia, eles é que borbulham superficialidade. E os engenheiros da publicidade, esses soldadinhos rasos a soldo do grande capital, só sabem fazer anúncios que convocam as hormonas dos varões. Não haverá mulheres clientes do “três em um” (entenda-se: televisão, internet e telefone)?
O moderador, avisado pela ampulheta que esgotou o tempo da feminista, tirou-lhe a caneta da mão. Deu-a ao rival, um marialva referenciado, amante de touradas e de lupanares (mas estes em segredo...). A varonil personagem deixou escorrer o tempo e o papel continuava em branco. Absorto. O pensamento a léguas de distância. Já os derradeiros grãos se esvaiam da ampulheta e o marialva esgadanhou uma dúzia de palavras em caligrafia boçal:
Quem sabe o número do telefone da menina do anúncio da Zon?

28.12.11

Dos olhos abertos


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEghcv_sFr-BnQgEb9l2Hyktg-hmFnTWZSyd6ARmiBeRV9Ti0MZQ_1yBmLk4fQ7Afsut8wwnGgjFBtHjSTTBaz2qs9yI2t5V639vUO1rvcciJg9rxoraiGiYZXss2lpIglepOv0Q/s320/venda+nos+olhos.gif
Eram os olhos intrujões? Interrogava-se: podia confiar nos olhos que tantas quimeras espalharam pelo tempo fora? Era como se uns olhos míopes disfarçassem logros com um manto espesso que parecia um adorno autêntico. Esses olhos que foram trama nas horas precisas em que não se deviam gorar na demanda de lucidez. Seriam confiáveis?
E, todavia, os olhos em combustão de encantamento eram uma anestesia adocicada. Era como saísse de si e fosse capaz de sobrevoar os demais, tudo o resto. Convencera-se que o cenário deslumbrante não pertencia aos sonhos, como qualquer conselheiro avisado diria em gratuito parecer. Mas persistia no voo que avivava o rosto com a frescura do vento noturno, frio como a noite invernal. Persistia nos olhos bem abertos. E porque estavam tão abertos podia lá acontecer que fossem atraiçoados pelos fariseus que desmontavam, tardiamente, os encantamentos pueris.
Desta vez, estava convencido que era diferente. Como o fora de todas as outras vezes – ecoavam umas vozes sombrias, teimosas, nos contrafortes do pensamento quando ele se dividia entre o braço de rio repleto de águas fantasiosas e o braço de rio por onde prosseguiam as águas trespassadas pela crueza. Mas desta vez era diferente – teimava contra a maré caudalosa dos fariseus que arpoavam a bandeira da transparência enquanto se convencera que eram embaixadores de uma maldade qualquer.
Os olhos não podiam esbarrar na altivez da desrazão. Outra vez. Os olhos estavam ungidos por pétalas cobertas de nitescência. Emprestavam uma razoabilidade singular, desconhecida. Emergira a consciência de um tempo acertado, um tempo desviado das precipitações que fermentaram as errâncias de outrora.
Num ápice, acertou as contas com as hesitações malsãs. Se os instintos fossem outra errância, ditosa errância essa. Que os calhamaços da história estão cheios de infecunda gente. De gente madraça. São as resoluções que trazem o mundo a reboque. O seu eixo giratório. Uma, todavia, desengonçada força motriz.

27.12.11

Um liberal é ateu (porque a igreja católica é iliberal)


In http://www.dn.pt/storage/DN/2011/big/ng1518185.JPG?type=big&pos=0
É preciso dar maior prioridade à pessoa, uma ordem económica que acentue o bem comum, vença os individualismos, as desigualdades chocantes, todas as formas de materialismo; [e] que aprenda a dar prioridade aos valores do espírito e não apenas ao dinheiro.” Cardeal-patriarca de Lisboa, mensagem de natal
Estava ocupado com as grafadas no fiel amigo sabiamente demolhado após a cuidada cura de água fervente na companhia dos tubérculos, das cenouras, das couves e dos grelos (se de nada me esqueço). Pelo canto do olho notei que o cardeal-patriarca doutrinava na televisão. A amesendação obliterara o som. Parecia um filme à moda antiga, dos mudos. Só faltavam as legendas entremeando a prédica do cardeal. As legendas vieram no jornal de ontem.
É enternecedor o cuidado com a pessoa, o mesmo com que a igreja católica andou séculos a eito a ostracizar os crentes, a educar na humilhação, no hábito da resignação, na asfixia do livre arbítrio. É comovente a proclamação de uma “ordem económica que acentue o bem comum” – pois não é a igreja que organiza peditórios para templos sumptuosos nem que isso determine menos pão e menos roupa nas casas das tementes famílias que pagam o dízimo? São “chocantes” as “desigualdades”. Também o são quando a igreja apregoa castidade material e depois se banha numa abastança que mete dó. Mas faz sentido que o embaixador do Vaticano convoque os “valores do espírito” em sobreposição ao vil metal. Já não bastava Gaspar (o ministro) rapar o fundo do tacho às empobrecidas gentes, em cima do ministro vem a hierarquia eclesiástica dar para o peditório do empobrecimento. Sobram os “valores do espírito”, que esses não têm preço que os pague. Deve ser o truque para a salvação da humanidade (e da gente lusitana em particular): desprendamo-nos de todos os bens materiais. Quando estivermos nuzinhos, daremos valor ao inestimável capital espiritual que hiberna em nós.
A novidade do costumeiro catecismo natalício televisivo é que não há novidade alguma. Aquilo que o cardeal-patriarca pediu na mensagem aos crentes (e aos incréus, para não haver discriminação) é um programa de intenções iliberal: comando, regras apertadas, liberdades atropeladas, valores objetivos e, suponho, um punhado de gente sábia (com necessárias peias católicas) a determinar tudo isto.
O fiel amigo estava opíparo. Mas as sobremesas passaram-lhe a perna. E a ceia do cardeal, terá sido frugal como mandam os pregões da bíblia?

26.12.11

O anonimato é mel


In http://3.bp.blogspot.com/-wMUYJt0hPKE/TaO3xqNoqMI/AAAAAAAAXg8/dm20b5YTqMM/s1600/anonimato.jpg
Não entendo. Os arrivistas ansiosos por um pedaço, nem que seja um curto pedaço, de “reconhecimento público”. Fazem das tripas coração para serem um bocado figuras públicas. Não lhes ocorre a fatura pesada: andarem na rua e notarem cem mil olhares sobre si deitados, mentalmente declarando “olha fulano”, por vezes interrompendo o passo para um certeiro autógrafo, outras vezes, talvez, interpelados pela desagradável eloquência do insulto.
O anonimato é mel para os ouvidos. Incomoda saber que os passos são vigiados por um exército de passarinheiros com antenas afinadas e a cábula mental bem exercitada para anotar quem viram, quando e onde e na companhia de quem. São os agentes secretos de um novo fascismo social – aquele que reporta identidades em lugares num tempo qualquer. Já sentira o bafo desagradável dos intrusos que apontam olhares. Foi numa cidade provinciana, poiso temporário. Na grande metrópole, onde se julga que não há o desassossego dos rostos que insinuam a ausência de anonimato, estava a léguas de imaginar que anos a fio de audiências numerosas seria o fermento para o anonimato desfeito em nada.
E o que sobra para diante? Medir os passos todos, para ver se estão na bitola do milímetro certo? Não vão os olhares intrusos eviscerar a privacidade para depois, ah depois, lavrarem sentenças atulhadas de beata moralidade. Ou espreitar pelo antebraço, ou pela sombra que se encavalita na nuca, para medir os olhares intrusos que, de gola enfunada, sejam sombra na catalogação dos passos, dos hábitos, dos lugares, das pessoas que contracenam? É quando mais apetece a transgressão.  
Mas há uma tremenda fúria que se apodera. Se isto é assim com um zé-ninguém, suponho os suplícios por que passam as muito mediáticas figuras públicas. Mas essas, ao menos, alimentam o voyeurismo dos outros sobre a sua intimidade. Oxalá uma divindade qualquer viesse aplacar a fúria, ungindo o sossego que é passear pelas ruas de uma cidade onde os olhares vindos de frente são todos olhares desconhecidos. Tão anónimos como o meu anonimato.