17.4.12

A partida (remake)


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Pássaros, sábios pássaros sibilam palavras encorajadoras ao ouvido. Rompem marasmos interiores. A brisa matinal tinge os sentidos com uma flamância singular. Os olham demoram-se no firmamento, como se nele demandassem o nutriente loquaz que virasse as páginas já encardidas.
As palavras rumorejadas eram ao início ininteligíveis. Um chilrear que ciciava sem decantar um sentido. A certa altura, no rumorejo geral, uma palavra clara subiu à tona: “partida”. O corpo cansado dos dias iguais sorriu ao ecoar da palavra, nas suas repetida vezes, na embocadura do ouvido. Era a seiva transportada pelo vento noturno, trazido algures do norte, um esteio de mutação. Mas os motivos não bastavam para alinhavar o mapa das deambulações que beijavam a errância. Era preciso mais. Um abalo telúrico vindo do mais fundo do ser, uma cortina enfim destapada e a janela entreaberta a revelar a claridade de um dia que se fez novo.
Faltava o ato mais corajoso, o ato mais difícil: a partida. Mover as rochas que se tinham petrificado, os olhos tisnados pela habituação, ou apenas treinados pela capitulação ajoelhada diante do pedestal dos hábitos cristalizados. Era preciso um outro abalo telúrico; talvez não chegasse – agora o chamamento de tão audaz desafio convocava uma erupção vulcânica, indomável, saltando por cima de todos os obstáculos desfeitos em cinzas com a lava cavalgando.
O vento noturno demorou-se em seus volteios, entrou fundo na carne da manhã. Só sossegou quando à tarde viu nascer o frémito da partida. As malas interiores todas arrumadas, o sobressalto de um porvir desconhecido por desembainhar. A espada dourada, empunhada com o orgulho do tempo refeito, ungia o faminto tempo que esperava testemunho em forma de voz. A voz, ao início trémula, cresceu nos contrafortes da afoiteza; ofereceu-se, peito aberto, aos ventos soprados dos quadrantes que fossem. A voz sabia que tinha um coro a domá-la: os sábios pássaros que evocavam as memórias que não queria retemperar.
No dia da partida, nem lágrimas, nem saudades, nem a mais leve expressão de arrependimento. Só contava a partida. Para algures, ou nenhures, não interessava. Apenas a partida. 

3 comentários:

Vanessa, a Mãe Possessa disse...

Uma partida à hora certa, acertada com honras de querer somado

PVM disse...

O pior é quando a partida não encontra as agulhas do (seu) relógio.

Vanessa, a Mãe Possessa disse...

O relógio acerta quando estamos prontos, inteiros, sem deixar nada para trás. Lá está, uma questão de tempo!

Sanar feridas, juntar os pedaços imprudentemente dispersos, desfazer laços, deixar a bagagem esquecida no quarto por não mais ser necessária... não são tarefas para mãos leves com tempo contado no bolso.