26.9.12

Cavalo desembestado


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Os arreios pesavam sobre o dorso. As esporas eram cintas afiadas que tolhiam a liberdade. Todos os dias, mal o feitor entrava no estábulo com a ração matinal, os olhos já tinham passado pelo crivo da alvorada. Marejados, os olhos não deixavam de sonhar. O cavalo já não se importava que lhe dedicassem as atenções todas, nem com a corte que o pajeava. (Ouvira dizer que valia o peso em ouro, pelas proezas embainhadas sob a batuta de um jóquei que pesava uma pluma.) Um dia, uma égua em visita transitória contara-lhe os prazeres da liberdade. Como era correr em campo aberto, os calços esbugalhando a terra mole onde tufos espessos de muito verde erva tinham ninho. Este sonho era um sobressalto contínuo. Repetia as imagens narradas pela égua, à exaustão. De tão exausto caiu doente. Fraco e macilento, meteram-no a custo na carrinha transportadora. Era ainda noite, a madrugada espreitando no estuário do horizonte. A tristeza consumira as forças, ia prostrado. Soergueu o pescoço e os olhos deitaram-se na paisagem já aclarada pela fresca luz matinal. Viu montes e vales, um imenso tapete ervado por diante. Relinchou como se a dor o consumisse. O cavalo simulou o estertor e o tratador ficou em pânico. Mal tomou o telemóvel entre mãos (teria de comunicar ao veterinário), o cavalo arrebanhou umas forças do mais fundo de si, saltando por cima do tratador. Correu tudo o que sabia. Sentiu um dardo de raspão – era o dardo que o tratador disparou para anestesiar a fuga. Falhou. E ele soltou as rédeas mentais que o domaram tanto tempo. Não estava doente, ou a correria desenfreada não encontrava forças em gestação. Trepou montes, saltou cercas de meter respeito, não se intimidou com os penedos, arredondados ou com vértices à mostra, que apareciam debaixo dos cascos. Bebeu a água que quis, sem o racionamento dos estábulos. Comeu comida pura e deu conta como é sensaborona a comida impura, a ração meticulosamente pesada pelo feitor. Dormiu ao relento. Sem medo dos lobos que uivavam ao longe, sem se intimidar com o vento furioso que se compôs no zimbório de uma tempestade. Acasalou com uma égua selvagem, que ensinou os outros rudimentos da liberdade. Os homens andavam pelo monte em sua demanda. O cavalo enfurecia-se quando os via ao longe, para logo empreender fuga. Passaram meses. Anos. Os homens deram o cavalo como baixa. Julgaram que se tinha precipitado do alto de um penhasco na serrania inexpugnável. Mas o cavalo viveu anos a fio sem saudades do aristocrático trato.

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