6.9.12

Poço da morte


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O avô não contara a verdade toda. Omitira as ilusões de ótica recrutadas pelos espelhos bem dissimulados, como elas caucionavam os truques do temerário motociclista que montava na motoreta e desafiava as leis de gravidade. O recinto estava cheio. Na audiência havia de tudo. Velhos, novos e crianças de tenra idade, homens e mulheres, gente instruída e gente boçal. Quando o motard arremetia contra as paredes tão inclinadas que estavam quase deitadas, ouvia-se um bruaá e alguns gemidos de senhoras que temiam pela integridade física do intrépido rapaz. E, todavia, estavam ali a assistir ao espetáculo, quem sabe se augurando um falhanço só para verem o rapaz a contorcer-se com dores, algum sangue jorrando das feridas abertas pelo tombo. Desenganaram-se. O rapaz era exímio. Isso e o resto – os truques que tinham caução no jogo de espelhos que se desdobrava em ilusões de ótica. O rapaz montava na mota e abstraía-se do resto. Até das ovações que vinham da audiência, primeiro tímidas, depois contagiadas a toda a gente que se empoleirava sobre a cavidade metálica onde a função ia acontecer. O capacete semiaberto deixava à mostra o rosto mal escanhoado do rapaz. O olhar, distante, petrificado nas curvas que pareciam impossíveis. O barulho ensurdecedor dava o mote para a função. As crianças mais pequenas, assustadas com o estampido, umas metiam as mãos às orelhas para silenciarem o ruído, outras destravavam choro convulsivo semeado pelo susto. O rapaz, indiferente a tudo, atirou-se às curvas impossíveis. Quando a mota estava numa perpendicular à audiência, não contente com a façanha, apostou num malabarismo mais: tirou um pé do suporte e a mão do punho que não controlava o acelerador. Deu três voltas ao recinto nestes propósitos, em velocidade sempre estouvada. O público: algum aplaudia em delírio, esquecia-se do jogo de espelhos que amaciava a proeza; outro, mais cético, ensaiava palmas tímidas, só porque tinha passado uns minutos de diversão. O rapaz desceu da mota, tirou o capacete e alisou o cabelo desgrenhado. Acenou com as duas mãos e fez uma vénia sobre si mesmo. A si mesmo. No dia seguinte haveria mais função. E o sobressalto, que era diário, da lei da gravidade poder derrotar o destemor do motard.

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