30.3.12

Às escuras


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De olhos vendados. Tateando as paredes, notando as verrugas da pintura desbotada com a sensibilidade na ponta dos dedos. Não havia sequer cicerone. Tanto dava que os olhos se entreabrissem: a venda tão espessa e escura não deixava entrar um vestígio de luminosidade. Temerários, os pés avançavam, esgaçando o passo. Quem sabe se por diante, quando no próximo passo o pé em levitação procurasse poiso, houvesse apenas um traiçoeiro vazio e o irremediável precipício.
O passo ia lento, compassado. As mãos agarradas às porosidades da parede, como se os quase impercetíveis talos levantados da pintura desgastada fossem arpões onde as mãos se ancorassem em segurança. Por mais que quisesse estugar o passo – para apunhalar o sobressalto da incógnita a que se entregara –, uns ventos sussurravam em contínuo “devagar, vai devagar”. Já nem lembrava como se abraçara ao perigoso jogo. Entretanto cerceou a marcha. Queria meter as ideias em ordem. Sabia que podia desabar o jogo quando quisesse; era só levar as mãos à nuca e desatar o nó que aprisionava os olhos à venda. Forças superiores, desconhecidas forças superiores, detinham os movimentos. Congeminavam a sua vontade como se ela esbarrasse numa vontade em sentido contrário. Os lábios mordiam-se sucessivamente, o sinal da destemperança inútil.
Teimou no jogo. Meteu as pernas e os braços ao caminho, arqueado para diante em pose defensiva. Fosse o que fosse, seria dado a saber sem demora. Por vezes sentia que estava lacerado num labirinto, o sentido de orientação insinuando a errância em círculos. Começou a sentir vozes ao fundo, como se à distância fantasmas ciciassem as memórias que não apetecia. O chão era irregular. Deixara de percorrer o solo cimentado do labirinto e já era chão pedregoso, o exterior. Foi quando uma voz mais nítida murmurou docemente ao ouvido: “agora podes destapar os olhos”.
Fez-se à cena a reminiscência: o lugar onde desaguara era a casa da partida.

29.3.12

Morder com a força toda


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Cão vadio. Errando pelas ruas, sacudindo as pulgas em pose diletante, os tufos de pelo encardido soltando-se quando as unhas entravam, fundas, no estuário do pelo. Em conhecendo a espécie humana, e tendo sido testemunha de açoites em sinal da má têmpera de uns quantos humanos, evitava os lugares sobrepovoados. Temia um pontapé, ou ser enxotado com um gesto repentino e intimidatório. Andava à cata de carrinhas suspeitas, que uma vez vira ao longe um primo a ser caçado com requintes de malvadez pelos furões camarários que têm o emprego mais néscio.
Havia dias de fome inteira. O estômago aderia às paredes viscosas do lado oposto. Rondava os caixotes do lixo espulgando comida despojada. Aprumava o olfato: era o urgente radar detetando alimento que almas misericordiosas depositavam aos gatos vadios. Nesses dias em que o desespero rimava com fome, se fosse animal racional e fosse dado a crer num deus qualquer, faria as suas preces antes de devorar as sobras de comida abandonadas. Uns primos afastados com que se cruzara haviam advertido que os restos podem ser um engodo armadilhado, a comida infestada com veneno irremediável. Os animais que soçobraram ao fastio tiveram aí a sua derradeira refeição. Mas o fastio subtrai lucidez. Às tantas, a fome é tanta que tudo se cega. Até agora tivera fortuna. Ouvia os humanos nos lamentos de uma crise ímpar, mas as sobras acabavam por encontrar seu leito final no lixo urbano.
Até o céu aberto, que era seu teto, andara complacente. O inverno era madraço, finório, invejoso da parcimónia primaveril. Ouvia os primos mais velhos a lembrar as invernias insuportáveis, como tiritavam de frio nas noites que nunca mais davam lugar ao sol que era um tímido agasalho. Cada dia era um hino à sobrevivência. E cada dia era para ser mordido com a força toda, como se houvesse mercê de repelir um mortífero ataque de um algoz humano.
Oxalá muita gente soubesse aprender com este arsenal de sobrevivência. 

28.3.12

A sensatez era um “asset”


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Os outros gabavam o predicado. Invejavam a precocidade. A lucidez deixava medir para além da opacidade das nuvens pousadas no firmamento. Desde cedo, os mais atentos pressagiavam dotes que subiram com a tenacidade dos autodidatas. Estes dons precoces, uma intuição informal, tinham causado dissabores. Às vezes parecia adivinhar as armadilhas em que não gostava de cair, muito embora já nada as pudesse contrariar. E as armadilhas doíam mais quando eram pressentidas sem poderem ser evitadas.
A certa altura, era como se tivesse dobrado o equinócio e os ventos soprassem de feição. Sem contar, aterrava no meio de uma tempestade alheia. Entre a poeira levantada pelo turbilhão das almas em desassossego, emparedado entre a sónica berraria e a pele contaminada pela elevada eletricidade estática, mantinha um sangue-frio contagiante. Quando os irritabilidades tomavam conta do pulso sôfrego em redor, mantinha-se imperturbável. A lucidez decantava-se entre as poeiras tóxicas que incendiavam as veias da gente amordaçada pela exaltação. As palavras que entoava, um bálsamo que aquietava os iracundos.
Junto do sexo feminino, o predicado começou a dar cartas. Um sortilégio. As palavras temperadas pela sensatez provocavam um turbilhão em contramão. Este remoinho irrompia, adocicado, o mestre da sensatez a ficar longos minutos estacionado na memória das donzelas assim serenadas. Notou o efeito – e jurou a pés juntos, à amiga entendida nos mistérios dos interstícios da alma, que não fazia de propósito. À medida que não se demitia do proveito, a sua parte sensível não cessava de demandar resposta a esta interrogação: por que se encantavam elas ao serem ungidas pelos dedos suaves da sua sensatez?
A amiga, entendida nos mistérios dos interstícios da alma, encontrou fio à meada: talvez se confirmasse que elas gostam de um porto de abrigo que as proteja das águas tumultuosas do mar aberto.
Enquanto amadurecia a ideia, ele ia tirando partido do dote.

27.3.12

“Just give them a whisky”


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O ruído de fundo. Um ramerrão desaustinado como se fosse tareia no juízo. Protestam, as suas vozes roucas, hormonais, ecoando até à lonjura dos alicerces ósseos. Move-os a, dir-se-ia, infinita paciência. Não têm sono, trespassando a noite até dela já sobrar a claridade que apregoa a alvorada. Os loucos noturnos, desapossados do sono, não contam as horas enquanto a noite foge para a dissolução. Só se apagam quando a luz clara da manhã despoja a noite do seu império, quando as luzes dos candeeiros se apagam em sua inutilidade efémera.
A insanidade é decretada pelos enfastiados que protestam contra o sono arrombado pela algazarra. Vêm à janela e vociferam, pedindo que os foliões desatem os nós da comiseração que nidifica algures no sangue turvado pelo álcool. Os foliões, incomodados pela vozearia que vem de andares superiores, espreitam com desdém entre a penumbra que os olhos embaciados consentem. Uns depressa devolvem o olhar ao piso térreo onde, debitam as bebidas que acompanham os acordes disformes de uma não melodia embatucada. Outros zombam dos vizinhos que queriam o sossego que deixasse o sono aterrar.
Na descompensação dos interesses, subiram aos insultos que já voejavam de cima para baixo e vice versa. A mulher gorda baixou os braços e subiu uma perna, os primeiros ao encontro dos segundos, e descalçou o chinelo roto que, ato contínuo, ganhou asas na direção da turba ruidosa. Uma rapariga que se enamorava de um diletante sentiu o catingoso chinelo esbarrar no rosto que ficou empolado com o rubor da fricção. Uma rapaz nas imediações ajuramentou vingança e, na hora, lançou o copo ainda meio cheio com uma mistela qualquer, fazendo da velha gorda ponto de mira. Não haveria de acertar, que o estado etilizado não caucionava equilíbrio qualquer.
O consorte da velha ofendida pediu gentilmente o chinelo perdido. Devolveram-lhe um paralelepípedo que falhou o alvo por centímetros. O velho deixou-se de mesuras, saiu disparado para a cozinha de onde trouxe uma bacia onde estava em dessalga um bacalhau inteiro. A água fétida foi aguaceiro aspergido sobre a turba barulhenta. E nem o cheiro imundo do bacalhau a demolhar há quatro dias usurpou a folgança. De cá de baixo, um jovem nada entediado com uma lasca de bacalhau que viera junto com a água da demolha, berrou: “da próxima vez, atira whisky!

26.3.12

E as más vão para todo o lado


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Tinha empinado muita educação com punhos de renda e rezas abundantes. Escola com bênção das freiras. Os progenitores já tinham passado pelo mesmo crivo. Era um legado entre as diferentes gerações. As tradições eram pedras graníticas com lugar inamovível. Dizia-lhe a avó paterna: “as boas raparigas vão para o céu. Tens de ser boazinha, que o bom deus de ti não se esquecerá.” A rapariga perguntava, ao início da meninice ainda ingénua: “e as meninas más, onde vão ter?”, para ver a avó a mostrar a boca desdentada enquanto a voz cavernosa soletrava todas as sílabas de “para o inferno!
Mas a miúda tinha nascido com o diabo no corpo. Os requintes, a etiqueta a rodos, as palavras bem medidas, os modos militares à mesa, a moralidade excessiva das freiras e dos priores na escola, os desafetos da mãe vassala e entristecida e do pai muito ausente – tudo eram sobressaltos interiores. A rapariga crescera. Dera alforria ao pensamento. Com a ajuda de uns livros emprestados por uns amigos da escola. Esses amigos haveriam de ser proscritos quando o pai, enfurecido, descobriu os livros subversivos.
A rebeldia foi tomando conta do corpo à medida que avançava pelos contrafortes da adolescência. Perdera o medo ao pai. Já não considerava a submissa mãe, aquela mulher que se anulava quando o pai estava presente. Os avós tinham morrido. Sobravam as avós, mas faltava-lhes saúde para se inquietarem com os desvios da neta. Não esperou pela maioridade para sair da mansão da família. Estava-se nas tintas para as mordomias. As coisas, na sua materialidade, deixaram de ter serventia. Recusou a mesada farta que o pai, num acesso de consciência, lhe quisera oferecer (depois de ameaçar deserdá-la, numa discussão na véspera). Arranjou trabalhos indiferenciados, biscates que serviam para pagar os estudos e a parte do aluguer do pardieiro que partilhava com uns amigos.
Um dia, foi acordada por uma mensagem no telemóvel. A avó paterna estava encomendada à extrema-unção. Faltou ao trabalho e meteu-se ao caminho. Passou pelos pais como se não houvesse vivalma. Tomou a mão fria da avó. Acariciou-lhe a testa gasta pelas rugas que se acumularam à velocidade da doença. Segredou-lhe: “sabes, avó, as meninas más vão para todo o lado.” E a avó esboçou o sorriso final, ainda com força para balbuciar “eu sei, eu sei.