31.5.12

Estilo


In http://lemousse.tudonahora.com.br/wp-content/uploads/2010/11/blog-de-betty-varios-relogios.jpg
Pequenos nadas fazem a diferença. Um código silencioso, eles e elas falando através dos adereços que ostentam, dos modismos que vão e veem, dos sítios frequentados que depois entram em desuso (que as modas exigem renovação). As cores são umas num época, outras depois. O zelo posto na indumentária, no penteado, nos tais pequenos nadas que ornamentam o conjunto, é ciência exigente. Um pequeno deslize cauciona a censura dos mais próximos, ou o desdém quando, alcoviteiros, se entretêm no jogo das facadas pelas costas.
Conversam muito. Mas só sobre modismos. Dos estilistas em ascensão, dos que deixaram para trás a carreira meteórica porque perderam crédito. A seita comporta-se como rebanho. Uns pregadores ungidos com presciência acima da média ditam, do alto do seu giz, as tendências dominantes. Apeteceu-lhes e essas serão as tendências. Os seguidores vão atrás, acríticos como em todas as religiões que entronizam seus sacerdotes. A trupe frequenta os mesmos lugares – assinalados no passa-a-palavra, ou, para os que cansam a vista na leitura, em épicos e mal escritos roteiros que afunilam as tendências. E falam uma linguagem repleta de jargão, um sinal identitário da matilha.
Se calhar, lá em casa até a cromática dos lençóis combina com as peúgas. Os guardanapos com a cor da roupa interior. Os óculos – adereço imprescindível, mesmo para quem tem visão a cem por cento – em harmonia com os sapatos. Aos mais carismáticos, lentes de contacto sem graduação apenas com o condão de porem os olhos em rima cromática com as calças. O penteado ora desgrenhado, ora todo alinhadinho com a ajuda de brilhantina abundante. O que com eles não rima são as manhãs. A vida que interessa passa pelos ponteiros do relógio quando este assinala a escura noite que, todavia, é um manancial de néones.
Leram um livro há três anos. Foram ao cinema para os olhos se deleitarem com um ícone estiloso que fez incursão desastrada por artes alheias. E é tanto o apetite pela comichosa moda que se esquecem das refeições à hora que elas deviam ser. Depois, são magros que nem cães vadios. O estilo obriga. E mais o quê? Nada. Um imenso deserto.

30.5.12

O que importa


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhZfQSBE8DPrAuXQeB_u31B_f2ukaVhx1HrnfNcPrXAhxE-w9Y7uZkb5xYdrBere2mxscBfOnZcbjUczwhQWzDBcvM4OVzhUtO29q3allGRyN9VDfhG-XUy_uqFToMIF7XRTWcymA/s1600/cropped-7075bussola.jpg
Os olhos, desatentos, demoram-se no restolho de onde colhem o bolor da existência. Dir-se-ia, os olhos conferem à existência a sua própria miopia. E desta miopia vêm, diáfanos, os dias que se mitigam na sua monotonia. Os olhos deviam apenas consagrar os sedimentos do que apimenta um orgulho.
Porque não são as dores que fornecem nutriente. Dessas, resgata-se a indiferença, como se elas apenas adestrassem a covardia que recusa a existência que se merece só por termos a dádiva de uns olhos observadores. Devem recusar as anestesias, que o tudo que conseguem é aldrabar outras dores que se esmagam contra o peito em ferida. Não há mercê de as negar. Os sobressaltos que traduzem os dias plúmbeos não são uma totalidade. O segredo é transformá-los em pequenos atóis, acantonados a uma coutada inacessível ao pensamento. Porque, entretanto, os tão observadores olhos souberam reluzir com as pequenas coisas belas transformadas em largos continentes.
A terra onde tantos oxalás se proferem não passa de uma promessa de que não se cuida realização. Oxalás que são intenções entoadas em forma de prece. Esgotam-se na inércia que se compõe logo a seguir. Tudo se faz de conta, até o sono intuído em voo plácido que consome a noite. Quando tudo assim acontece, é a capitulação. A fatal capitulação. O porvir será um simulacro.
Há um método imperativo (para os que não querem sucumbir à letargia letal): esquadrinhar entre as pedras, remover as poeiras desatentas, olhar entre as sombras do luar, decantar as palavras de um poema, dissecar as entranhas de uma música ou de um quadro, demorar o olhar na imberbe inocência das crianças azoadas em plena brincadeira, deter os olhos na coreografia do mar, ou subir ao promontório e sorver, à forca dos plenos pulmões, todo o ar fresco sussurrado pelas montanhas.
O dia seguinte será uma alvorada coberta de ouro e pétalas perfumadas.

29.5.12

Pérolas a polvos


In http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/a/ab/Polvo.JPG
As cartomantes, quiromantes, bruxas (montadas, ou não, em vassouras), catedráticos de mezinhas e outros que tais, se andassem atentos já tinham protestado. Aproveitavam para montar no enternecedor humanismo que ensina a superioridade da espécie humana sobre os demais animais (remetidos à condição de bestas). É que em véspera de internacional certame do futebol, o Sealife teve a pouco original ideia de meter num aquário um polvo vidente para se deitar a adivinhar os resultados da bola.
Se eu fizesse parte daquela classe de profissionais esotéricos, nem dormia de tanta preocupação. É concorrência desleal. Se a moda de há dois anos pegar, quando meio mundo se convenceu que um polvo alemão tinha dons premonitórios, vai andar esse meio mundo maluco atento ao oráculo do polvo do aquário. Coitados dos atletas. Nem os quero imaginar a lutar contra insónias em vésperas da transmissão do auspício do polvo sufragado – pois agora a inventividade foi ao ponto de registar em imagens de televisão (e em direto) as voltas que o cefalópode der antes de escolher a bandeira agraciada pela vitória. Com a algazarra que por aí anda, esse momento televisivo fará estourar audiências. E não sei se é um exercício justo: suponham-se os tremeliques dos atletas da equipa fadada à derrota pelo presciente polvo. Assim o certame perde a graça.
E eis-nos nas mãos (errata: nos tentáculos) de um cefalópode. A tanta algazarra, a que não sei se é autorizado chamar superstição (alternativa simpática) ou estultícia (com os pés mais no chão, esta alternativa), serve duas lições. Primeira, o menos irracional de todos é o polvo entronizado. Segunda, ao menos as cartomantes, quiromantes, bruxas diversas e catedráticos de mezinhas mil não acabam no prato dos comensais depois de estágio no forno em cama de azeite de primeira e batatas pequeninas prontas a serem esmurradas. 

28.5.12

Às asneiras que ficaram por fazer (2)


In http://yotamak.blogs.com/.a/6a00d8341c145e53ef01116896db81970c-800wi
Já que tinha obtido a bênção do velho, não podia capitular diante da covardia. O velho entreabrira as portas da experiência. Ainda hesitou. Uns segundos. O velho começou a mostrar impaciência, desviou o olhar para o lado contrário. Encheu-se de coragem e ordenou o pensamento que parecia caótico.
O resto foi um longo monólogo. Sem olhar o velho nos olhos, os olhos sempre absorvido pelo firmamento que era uma concha formada pelo ângulo aberto dos dedos entrelaçados. O velho fundira-se no seu silêncio. E não era essa a serventia que esperava? De resto, o velho não lhe parecia tarimbado em lições de moral. Havia naquelas rugas, na aspereza com que falara, um vazio para as ingenuidades que atraiçoam os percursos.
Deitou-se ao monólogo. Eram consumições do tempo pretérito. Mas não eram erros trazidos pela mão envenenada dos atos, eram as omissões que se encavalitavam no sopé da devastação. Queria ter feito o que não fez quando talvez a idade fosse caução. O pior era o arrependimento que o apoquentava. O maior fantasma. Acordava a meio da noite, suado, tomado por palpitações sonoras, e recordava uma funda voz que sussurrava ao ouvido “não fosses timorato, não te deixasses aprisionar pela apatia”. Às vezes, revoltado com a voz melodiosa que ecoava vinda de um nada, irrompia em fúria devastadora. Se pudesse, se a exigível coragem estivesse à mão, reduzia tudo a um amontoado de vestígios sem sentido. E foi debitando a lista dos não acasos que embaciavam o tempo corrente.
O velho ouvia com paciência. Quando a clepsidra se deitou e o monólogo findou, perguntou-lhe: “se os dois sabemos que os arrependimentos são palavras vãs, de que te serve continuar a molhar as mãos num passado que poderia ter sido?” Ele, com os olhos raiados pelo cansaço das noites mal dormidas, admitiu: “tenho medo do que podia ter sido”. 

25.5.12

Às asneiras que ficaram por fazer (1)


In http://rlv.zcache.com.br/teste_padrao_psicadelico_do_oleo_do_arco_iris_ampliaçãofotos-rb8ccf2d38197451fa05263b80f91bd96_wyy_400.jpg
Num daqueles dias em que parecia que as nuvens embaciaram o sol para sempre. Um daqueles dias em que a azia se consome por dentro de pensamento. Errava nas ruas. Errara nas ruas quando elas ainda estavam apinhadas. Voltara a errar, já sob o juramento das luzes noturnas, quando se esvaziaram de gente.
A meio da fria madrugada desaguara num bar escuro, mal frequentado, talvez a imundície toda na amostra da fétida casa de banho. Sentou-se ao balcão. Foi logo abordado por uma mulher gorda, feia, com uma verruga enorme junto a um dos olhos. A mulher balbuciou palavras ininteligíveis. Não pediu para repetir, nem se importou de saber ao que ela vinha; apenas acenou com a cabeça em sinal de negação. Ao lado sentou-se um homem velho, emudecido pelas rugas. O homem pediu a bebida sem olhar para o lado. Era como se não desse conta da sua existência. Apenas desviou o olhar por instantes para assinalar a bebida no copo vizinho. A música ficou mais baixa. Sentiu um apelo invulgar, ao jeito de torrente de lava a emergir desde as profundezas das veias. Tinha de cauterizar as tantas feridas revolvendo-se nos pensamentos em sobressalto. Tinha de os passar à palavra, à palavra que fosse escutada por alguém. De preferência, um desconhecido. Seria um acaso: sabia lá se o velho sentado no banco do lado estava embebido na necessária sensibilidade. O homem envelhecido parecia um brutamontes vindo da estiva, ou das obras – mas isso eram os (habituais) preconceitos em vaga destilação.
Encheu-se de coragem. Enquanto o velho mergulhava, sôfrego, no brandy, começou a falar. Sem que o homem esboçasse reação. Parecia desinteressado. Deitou o nariz para fora do largo copo, sem desviar os olhos. Cruzou as mãos enormes, também elas enrugadas, fitou o teto preenchido por postais deixados por marinheiros que aportaram vindos de todos os mares. Franziu o sobrolho, num esgar que ao início o atemorizou (pensou: “não tem paciência para me ouvir”). Fez-se ouvir numa voz poderosa e rouca, cansada pelas rugas retratadas no rosto:
- Pareço-te psiquiatria? Apetece-te falar com alguém mais velho? Não vês neste bar ninguém mais indicado? Acho que tens razão (depois de olhar em redor e anuir na fraca clientela). Mas não pressintas em mim um oráculo. Faço-te o favor. Apenas de te ouvir. Se achas que te faz bem.

24.5.12

Cabeças no ar


In http://kwmustlouis.files.wordpress.com/2010/09/looking-up-2.gif
Foguetes pela noite, nariz apontado ao céu, os olhos encantados pela crisálida de cores que acompanha o ribombar. E não damos conta do chão que pisamos. Das pedras, se estão sujas, se são praticáveis. E não damos conta das horas que vão em cima do tempo. Os anjos alados são zarapelhos fantasiados (de anjos). E nós, distraídos, açambarcados pelo devaneio que empresta um certo ar celestial (ou, dir-se-ia, onírico?), nem chegamos a medir a cauda melíflua que se destapa, descuidadamente, no convés da fantasia de anjo.
Nem com chapéus. Nem com chapéus lá vai – as cabeças sempre aéreas, as palavras ditas pelos outros que soam a nada, como se entrassem num ouvido em canal direto para o outro à velocidade do som. Depois acusam-nos de insultarmos, com a nossa apatia, quem nos diz as coisas que seriam tão importantes e que em nós apenas soaram a silêncio. Parece que há um mundo – melhor: um universo – que pertence apenas a nós. Somos seus condóminos exclusivos. Refinamos as antenas dos sentidos e aterramos lá, nesse sítio reservado às nossas exclusivas existências. Levitamos. A atmosfera faz lembrar as imagens de alunagens e de como os astronautas ensaiavam coreografias em câmara lenta. Mas a nossa levitação não é em câmara lenta.
Das árvores, uma melodia de perfumes. Os frutos abundantes, em cores garridas, emprestam outros, adocicados, odores. Nunca está frio e nunca está calor. É dia quando nos apetece. Faz-se noite quando o cansaço sussurra aos ouvidos e um gesto espontâneo desce as persianas. Não há relógios. Nem calendários. Não há trabalho nem serventia de férias. Ora pintamos, ora apreciamos o mar lânguido, ou as ondas que cavalgam na sua fúria quando o mar de fundo chega, grandioso, à praia. Ora fazemos poesia. Mas sempre sem planos nem horários.
Dizem que somos párias. Que interessa? Antes cabeças no ar que gente enfadonha e muito encalacrada na seriedade do real.