31.8.12

Das coisas janotas


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O admirável microcosmos do marketing, outra vez. Ainda há truques que desconhecemos? Temos a mania que somos perspicazes, que não escapam as patranhas dos feitores de marketing, pois estamos dois passos à frente da vanguarda criativa em que transitam aqueles profissionais. De outras vezes, duvidamos dos desideratos de quem cozinha o marketing, por exemplo, das cadeias de hipermercados e afins. Primeiro, a publicidade ata-se a uns critérios de duvidoso valor estético. Não é de estranhar. Aqueles lugares são, talvez, dos que têm clientela mais democrática, pois tanto o povaréu remediado como a burguesia bem posta na vida e até os mais endinheirados estacionam nas prateleiras dos hipermercados. Segundo – e é aqui que pretendo desaguar – há de estar por vir o dia em que nos explicam por que têm voz radiofónica as meninas que dão a boca ao microfone. Sempre que o ambiente sonoro dos hipermercados é invadido por anúncios que propagam uma voz invariavelmente feminina, essa é uma voz que parece ter feito tirocínio numa estação de rádio. Chegou-me aos ouvidos que os funcionários destes hipermercados passam por um intenso programa de reeducação para serem aí funcionários. Uma disciplina do tirocínio será dada por vozes radialistas que ensinam os rudimentos da colocação da voz, soletração e timbre (isto serei eu a adivinhar). As vozes serviriam para voz off em anúncios radiofónicos, ou até em publicidade televisiva. Escapa-se-me ao entendimento as vozes radiofónicas dentro de hipermercados. Na lógica da satisfação das vontades da maioria, e em sendo esta terra cada vez mais um lugar de gente remediada que esconde as peúgas rotas pela crise, porventura os profissionais do marketing terão descoberto que o cliente deixa mais dinheiro nas caixas registadoras se uma voz feminina e radiofónica se debruçar sobre o microfone e entoar a mensagem para enfeitiçar o cliente. O mal deve ser meu, que ainda hoje notei na coisa muito janota: admirado com o jeito da menina para locutora de rádio, nem percebi o que ela tinha acabado de lengalengar.

30.8.12

E agora que termina a silly season


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Dizem que agosto é o mês das férias de meio mundo. Esse meio mundo desliga-se da terra e a outra metade trabalha a meio gás. E como parece que nos cansamos da rotina dos outros meses em que não estamos de férias, tratamos de meter o cérebro em banho-maria, dando corda a um punhado de neurónios e pondo os outros em pousio. Daí a ausência de horários para tudo, as leituras prometidas mas que a preguiça adiou, as conversas sobre frivolidades, o nada fazer que não seja preguiçar, enfim, a andadura da silly season. Não nos apoquentemos, que os meses que não são de férias já reclamam o ar sisudo, as coisas sérias tratadas no requinte das solenidades. Nas férias rompemos com a anestesia dos meses que o não são. Que cuidemos das coisas superficiais, que delas também se alimenta o ser entretido na época de descanso. Mas o agosto abeira-se da sua foz. E enquanto promete desaguar no setembro começam as consumições que antecipam a profissão reassumida. Devia existir um interruptor interno que desligasse, sem hipótese de retrocesso, as habituais consumições. Enquanto não descobrimos tal pólvora, siga o salvo-conduto já rotineiro das férias que estão a acabar e devolvem as inquietações do trabalho. Extemporaneamente. Estava capaz de arriscar que andamos com os arreios às avessas, pois pode dar-se o caso de estarmos iludidos no diagnóstico vezeiro: e se a silly season fossem os onze meses dos vapores que trazemos do trabalho para casa e as férias fossem o auge da lucidez? Assim como assim, já há quem redesenhe a economia para fazer o ranking dos países segundo o critério de felicidade. Admita-se que nas férias não produzimos; eis o mês ideal para afundar o PIB, como se uma economia adormecida e poltrona tomasse um calmante, porque um charlatão qualquer afiançara que tal receita dobrava o braço da maleita. Em não produzindo, somos felizes quando conseguimos desligar das importunações do trabalho. É quando somos felizes que melhor nos dispomos a oferecer contributo que se veja para a economia da nação. A silly season devia ir por setembro, outubro, novembro e por aí fora.

29.8.12

Em modo O’Neill


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À simplicidade das coisas complicadas. Não sabes nadar? Mergulha do alto de um penhasco para uma laguna onde não tenhas pé, e diz se não sabes nadar. Repugnam-te as vísceras de quadrúpedes transformadas em gastronomia fétida? Experimenta passar um punhado de dias sem mantimentos. Tens acessos asmáticos e ficas com apoplexia respiratória quando passa um gato nas imediações? Supõe que tinhas vocação para veterinário, ias descalçar a bota. O médico diz-te, com a autoridade paternalista de quem trata da saúde dos outros, que tens de deixar o uísque ou vais a caminho de uma trombose? Continua, não te esqueças da dose diária e vai encomendando a extrema-unção (se chegares a tempo de telefonar ao sacerdote). Ou podes, como deves, desdenhar de todos moralismos baratos que embelezam a quotidiana marcha do tempo e faz apenas o que apetece. Nunca se sabe quando chega a estação terminal. Pode ser doença, demorada, desfazendo em nada o que sobra da dignidade do ser. Ou pode ser sem aviso, a chave apodrecida abrindo outras, indesejáveis, portadas. Portanto, faz o que apetece. Não sabes o que é? Imagina meia dúzia de meses com lucidez e capacidades intactas, só isso. Esquece as coisas complicadas. Contempla-as, toca-as com o carinho que trazes nas mãos. Se parecem complicadas, cabe-te a sua transfiguração. As tempestades não passam de coisas imaginadas. Procura, por dentro da tua grandiosidade, as pétalas que arrefecem a fúria das tempestades. Bebe o que vier. Erra pelas ruas até se cansarem os pés. Protesta a bondade com que perfumas quem se cruza no caminho. Vai aos banquetes, assina petições (das mais ridículas às apoderadas pelo sisudo rosto dos signatários), monta a bicicleta ostentando apessoada fatiota, perde os modos à mesa, entra no mar todo vestido, deixa nas mãos de um mendigo uma esmola como nunca recebeu no tempo da mendicidade, viaja sem rumo, pega na paleta e pinta o céu da cor que calhar. E não te esqueças, tudo é complicado apenas quando nos convencemos da complexidade. 

28.8.12

Thinking outside the box


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Das certezas que soam a vazio. À passagem do tempo, os saberes traduziam mais dúvidas. As ideias eram desafiadas na sua harmonia. Sentia a necessidade de pensar diferente, coisas diferentes, alindar os campos (até então inférteis) das doutrinas repudiadas. Era um reposicionamento que oscilava ao entardecer, sempre ao entardecer – parecia a hora combinada para as hesitações que consumiam pelo interior. Quando interrogava os saberes que julgava serem, admitia estar menos convencido com as doutrinas por onde transitara. O pior, é que não reconhecia melhor potencial às que eram alternativas. Talvez estivesse apenas a macerar numa profunda confusão. A precisar de uma interior peregrinação que aclarasse as ideias das nuvens plúmbeas que entretanto se acastelaram. A certa altura, pareciam irrelevantes as ideias todas. Eram fragmentos de uma explicação das coisas, fragmentos que traziam à tona pedaços da realidade. Às vezes, apeteciam mais as polémicas com correligionários ou afins. Que as mantidas com sacerdotes das ideias diferentes eram uma canseira e não estava seguro que os adversários não estivessem, afinal, ungidos de razão. Apreensivo, desfiava as perguntas que fermentavam consumições interiores. O pior dilema: desconhecia se era datado o pensamento, o que convocava a humildade intelectual de as renegar, para depois alistar em doutrinas que foram rivais; ou se era apenas um capricho, o sonoro bocejo por causa da rotina do pensamento quase imutável. Não demorou o diagnóstico: temia que a espingarda arremetesse contra a segunda hipótese, e a primeira mereceu sentenciação. Ficava melhor no retrato. Em surdina, sem esboçar esgar de desprazer pessoal, inquietava a possibilidade de um cansaço ditado por capricho. Superou a metódica hesitação. Refugiado num novo retrato interior, os alicerces das ideias de outrora destinados ao lugar de ruínas, era um daqueles transviados que dão a cara. Um pensamento teria de existir. Se fosse a negação do pensamento alinhavado nos muito anos anteriores, que houvesse humildade para admitir que os olhos viam por um diadema enviesado. As ideias, novas e já não estranhas, começavam a soar no alpendre da lógica.

27.8.12

Diabo tendeiro


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Águas agitadas inquietavam os instintos. Era como se, às tantas, os pontos cardeais não rimassem com as bússolas existentes. O corpo, refém entre duas águas vorazes, uma salgada e a outra doce, queria alinhar pelos sentidos proibidos. Esse não era o mal; o que cheirava a ranço era a diatribe interior: estava dividida entre render homenagem aos preceitos da normalidade e a indómita vontade de infringir. Sentia um diabo a passear-se, irrefreável, por dentro das veias. Esbarrava nos anticorpos da racionalidade que não paravam de sussurrar os perigos da rebeldia apetecível. Mas as vozes dos diabretes eram mais audíveis, terrivelmente sedutoras. O frémito contagiava o corpo, afogueado naquele dia invernal que mais parecia o mais quente do ano, por estar domado pelos tiranetes endiabrados que queriam locupletar a sua vontade. Ela sabia que arriscava decair em ruínas se os perigos advertidos tivessem confirmação. Em instantes de abreviada sensatez, uns laivos de racionalidade cobravam as hesitações que abrandavam o devaneio proibido. Mas logo as vozes tão serenas eram obliteradas pela vozearia hasteada por demónios impantes. O corpo dela já se tinha entregue à coreografia que pressagiava o ocaso possível, imersa na escolha das intuições adulteradas. Ou podia ser que as bitolas estivessem trocadas e os pontos cardeais, tal como são conhecidos, fossem um ardil para destravar a corrupção dos conceitos. O bem seria a maldade encapotada. O mal, apenas um engodo semeado pelos seus querubins que, disfarçados, seduziam os incautos com a contrafação dos sentidos. O diabo tendeiro, já não sabia o que seria. E, no auge da desequilíbrio, deixava o entendimento refém da casualidade. Perguntou se não estaria nos contrafortes da demência. Mas se já nem a demência sabia o que seria, como medir resposta para a interrogação? Demoveu-se de procurar esclarecimentos para a revoada de interrogações que a esbombardavam. Se aquilo era o diabo, ele que fosse tendeiro à vontade.