29.3.13

The next big thing


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Não estava conversador. À roda da mesa, os convivas engendravam a conversa, as ideias fluindo sem ordem que não fosse a do vinho vertido. Estava apenas ouvinte. E pensador nas palavras tartamudeadas pelos outros. Numa esquina da conversa, alguém falou de um grupo islandês que dera a conhecer umas músicas do disco ainda não publicado. Um deles sentenciou: “é Joy Division puro e duro!” Outro não discordou, não dera toda a atenção às músicas que ostentavam aquela comparação. Mas opinou: “cá para mim, os Interpol são os legítimos sucessores dos Joy Division.” Um terceiro amigo que estava na amesendação travou-se de razões: “e não serão os National a merecer a comenda?
Ele ouvia, enquanto se desligava da traficância de argumentos. E enquanto se desligava da discussão afinada sob a batuta do álcool (e, talvez por isso, os argumentos e contra-argumentos perdessem sentido à medida que neles se entranhava a exaltação), dava consigo mortificado pelos elos adoentados dos dias recentes – a penosa experiência da caridade, o cair em si na gravidade do involuntário ócio que podia ser uma persistência, o paradoxo da emigração. Desligava-se das derivações da conversa quando ela o chamava através de um dos seus intérpretes: “alguém te soa a Joy Division?
Encolhia os ombros, tal o desinteresse no assunto, sem que o desinteresse viesse cativar o pasmo dos demais pois depressa se entregavam a nova revoada de ideias buriladas para o convencimento dos oponentes. Enquanto mantinha o silêncio prudente, não fugia da resposta que tinham pedido. Remoía as ideias que não chegavam a ter expressão em palavras ditas. Ficaram, as ideias, guardadas no pensamento. O que teria de dizer podia destruir o alvoroço que ungia a mesa no restolho da refeição. Descobrira um método que já não era recente: impedia a audição de tudo o que fosse prometido como herdeiro dos Joy Division. Incomodava-lhe a ideia de que os Joy Division deixaram um legado por terminar. E que três décadas depois (como já tantas vezes acontecera pelas outras décadas fora), novos Joy Division com outros nomes irrompessem. Mal alguém carregasse às costas a torpe incumbência de ser herdeiro dos Joy Division, deixaria de ser ouvido.
Esta insistência em recuar ao tempo perdido no macilento passado tinha um equívoco fio condutor com as incógnitas que o intimidavam. Uns, instalados e sem dores de sobrevivência, desdenhavam do presente de cada vez que iam ao pretérito buscar a linhagem escondida no tempo atual. Outros (ele), perseguiam uma centelha que fosse anúncio do tempo vindouro. Que interessavam os pretéritos se dali já não recolhiam serventia alguma?
Despediu-se antes da amesendação ter findado. A pergunta mantinha-se a vermelho incandescente sob a memória (e não era sobre os putativos herdeiros dos Joy Division): haveria de emigrar? A desidentificação que podia apenas ser espuma momentânea era outro manso gorjear a favor da partida. A caminho de casa percebeu que caíra num logro (de que não dera conta se não mais tarde): se tivesse demorado por toda a estéril discussão, saberia se era motivo para emalar os pertences rumo ao distante.
O troco para a pergunta perene daqueles dias é que era the next big thing.

28.3.13

Dois gumes


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Era a primeira alvorada sombria. A noite fora mal dormida. Sonhos que pediam meças às obras-primas do surrealismo, ou a andanças por galerias de arte onde desfila a espampanante pop art. A preguiça era motor da inércia. Nem queria espreitar ao espelho quando estivesse a lavar a cara: o rosto devia estar medonho, a atestar pela indisposição que azedava o pensamento.
Podia ser do murro no estômago da experiência de voluntariado na caridade. Podia ser porque um amigo teimava na récita do primeiro-ministro que, desastrado, convidara os desempregados a fazerem-se à emigração. Podia ser do filme com que terminara a noite – um filme cru, despido de emoções e, contudo, que o trouxera às lágrimas por saber que há gente boçal que não se trava de razões com a emoção, gente com a espessura (e a temperatura) de um iglu. A da emigração transtornava-o mais. Pela primeira vez, virou-se do avesso para descobrir se era candidato a procurar outro modo de vida em terra que fosse longe e onde se falasse idioma não dominado.
Andava nisto há um par de dias, o tempo saturado pelas interrogações que desciam do horizonte e fulminavam com raios irados o resto a que se dedicara. As imagens pungentes que o invadiram quando se emprestou à ajuda aos miseráveis que povoam as ruas e delas fazem seu teto não ajudavam a sufragar os dias cristalinos. Era ao contrário: o céu por cima da sua cabeça andava carregado, as nuvens plúmbeas alvitrando trovoadas feéricas, um tempo taciturno que vinha na espuma dos dias ensombrecidos.
Devia emigrar? Dera uma vista de olhos às finanças e, contas feitas, o subsídio pago por estar sem ocupação não deixava muita folga. As ajudas, não contava com elas. Que familiares chegados não os tinha ou, se os tinha, o que menos desejava era incomodá-los. Amigos endinheirados, alguns. Mas o orgulho (que sempre fora seu algoz) não deixava aceitar sequer interrogações sobre o estado das suas necessidades. E voltava à pergunta: devia emigrar? Não tinha os pulsos agrilhoados à terra onde vivia, nem sequer à terra que o vira nascer (que, manda a verdade dizer, era um lugar esquecido). Altivo, julgava-se superior aos que vertem lágrimas de comoção quando ajuramentam a bandeira pátria. Havia os mais próximos que eram, todavia, um frágil laço às origens. Pouco viajado, não temia a incógnita que era abalar para um sítio desconhecido.
O distanciamento aconselharia a emigrar, que a vida se faz árdua para quem perdeu o lugar onde ganhar um salário e sabe que é quase miragem encontrar alternativo lugar para voltar a ganhar salário. Não conseguia entender a resistência à emigração. Se ao menos fosse nacionalista, ou se houvesse uma família a deixar para trás, ou houvesse temor por rumar a terras desconhecidas. Já não sabia de onde vinha o incómodo: se era do paradoxo em que as mãos se ataram (poder emigrar mas não derrotar o estorvo), ou se era por não saber que troco dar à pergunta “devo emigrar?” 

27.3.13

Uma procissão por dentro (II): a caridade


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Logística tratada. O que julgara ser o maior obstáculo à caridade no terreno, pois nunca fora seu forte ser metódico. Uma vez que se convencera que tinha de experimentar a caridade por dentro, sabia que não podia ir sozinho na aventura. Tinha de se juntar a um grupo de voluntários que percorre as ruas da cidade oferecendo alimento quente e agasalho a quem vive sem teto. Uma amiga tratou da logística. Ela tinha uma prima que era voluntária habitual numa dessas organizações.

Combinado dia e hora numa reunião onde foram ensinados preceitos básicos, juntou-se à equipa de voluntários. Sem grande entusiasmo. Meteram-lhe um colete refletor no dorso, o colete de cor tão garrida que agredia os olhos, ostentando nas costas o dístico da organização (uma ave alva segurando pelo bico um alforge de mantimentos). Meteram-se pelas ruas, obedecendo ao trajeto estudado. A cada paragem, os voluntários como ele desciam da carrinha e emprestavam-se ao frio e à chuva. Até a meteorologia estava a preceito da provação a que se convencera dar. As bátegas de chuva sacudidas pelo vento proceloso entravam até em sítios escondidos do céu. No ir e vir entre a carrinha onde estavam os mantimentos e os sem-abrigo que se mantinham recolhidos, estava com o rosto ensopado. Não tiritava de frio porque os trajetos cá e lá e o peso dos descarregamentos eram tarefas penosas.

A paisagem de necessidade, que não mudava a cada recanto povoado de mendigos, um desafio para os sentidos que andaram ausentes. Havia momentos, no repouso entre duas entregas, em que era assaltado pela acusação de alguns dos mais próximos que não entendiam como podia ele ser insensível à indigência dos desprotegidos. Jurara que não ia contar aos mais próximos que aquela noite fora de alistamento nos voluntários que aliviam as dores básicas de quem andava arredio da fortuna. A experiência não era para provar nada a ninguém. Só a ele próprio.

As horas pela noite dentro foram pródigas em misérias várias. Viu gente de todas as idades. Uns em estado adiantado de decadência, outros em recente divagação pela comiseração. Uns que precisavam tanto de alimento e de agasalho como de alguém que escutasse as angústias em carne viva. Outros que pareciam ter desaprendido a comunicar com outra gente. Alguns que, de tão doentes, não tinham sequer força para sair do ninho e recusavam o alimento quente. Num canto fétido que era refúgio para meia dúzia de pessoas, uma mulher velha e mirrada pegou-lhe no braço enquanto recebia a sopa quente, a marmita com o prato do dia e um cobertor lavado. O olhar marejado era sofrimento e gratidão. Balbuciou ao ouvido: “meu filho, não te entregues à má sorte. Aqui o sol é sempre negro.

Deitou-se, já a madrugada se anunciava. (Depois das entregas tivera de participar num briefing que fazia o balanço da noite.) O cansaço era tanto e, todavia, o sono ausentara-se. Em sintonia com a indiferença com os miseráveis. Que saiu reforçada depois da experiência de caridade que fora desafio para saber melhor de que têmpera era feito. Confirmara-se a sentença implacável dos mais próximos: não tinha propensão para as maleitas que açambarcam tantas vidas despojadas nas ruas frias e húmidas. E nem os sentidos agredidos, depois do tanto que vira, chegavam para mudar de ideias.

Podiam todos dizer que era egoísmo. Não interessavam os juízos alheios. Preferia a sanidade mental. Que andaria transtornada nos dias que se seguiram. A todos os telefonemas da organização, fez de conta que não ouviu. 

26.3.13

Uma procissão por dentro (I): a caridade


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Tanto era o tempo para matar que, para não se entediar com o tempo em decaimento, cada vírgula do tempo era pretexto para a conceção criativa. Estes meses de sobra de tempo foram pródigos em funções que deixaram de estar adiadas, em funções algumas desconhecidas, em atividades inesperadas que de um nada vieram à superfície. Um tempo de uma fecundidade singular.

Nos interstícios do tempo madraço, ao juntar as mãos na empreitada de não deixar que fosse uma ceifa audaz que reduzisse a nada o que ainda sobrava, o pensamento fervilhava. Foi quando descobriu outra empreitada: contar as tarefas de que fora contumaz. Há quem vá às Índias com a contenda da calibração interior. Não foi tão audacioso – e não era por não acreditar nos predicados medicinais das Índias que houvessem; era mais modesto nas intenções (talvez os réditos em míngua fossem o trunfo a pesar).

O lápis pendido entre os lábios ajudava à conceção da lista que seria bússola doravante. Uns instantes depois, já escrevinhava no guardanapo amarrotado que fora pedir à esplanada ao lado: “caridade”. Admitia a ausência. Alguns dos mais próximos já tinham esfregado no rosto como se de uma bolorenta censura social se tratasse: ele não tinha sensibilidade para os miseráveis. Norma, era indeferir comiseração que entrava nos olhos pela mendicidade de rua. Norma, era ignorar campanhas de solidariedade montadas à porta dos supermercados. Norma, era nem abrir a porta de casa quando do outro lado se anunciavam pedintes para ajudar crianças mortificadas pelo cancro ou órfãos que careciam de alimento. Estava habituado a passar pelos mendigos que se abrigavam sob pontes e viadutos ou nas soleiras de prédios cêntricos sem sentir sobressalto.

Talvez os mais próximos que acenavam a desaprovação estivessem ungidos pela razão. Não estava seguro (fugia da razão quando podia). Os olhos detinham-se na palavra “caridade” reavivada pelo lápis desgastado que já tinha passado um par de vezes, redesenhando-a a preto forte. Reavivando a procura pela experiência que reclamava participação. Assim como assim, recordava-se que há dias ficara com o olhar aferrolhado à oferta de comida e bebida quente que voluntários faziam aos sem-abrigo que enganavam o frio da noite invernal. Talvez fosse um sinal.

Guardou o papel que seria arquivo das intenções do que jamais fora feito. O primeiro desafio estava congeminado. Cuidaria, de seguida, de o tornar possível.

25.3.13

A cor levemente acidulada da tempestade


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Ao anoitecer, passara pela vizinha hippy do terceiro esquerdo. Já não a via desde que ela e as militantes amigas o tentaram convencer a engrossar a manifestação a que, diziam, todos os lúcidos deviam ir. Soubera naquele dia que, para os propósitos da seita, não era lúcido. Como se já não chegassem as inquietações tardias – aquelas que já deviam ter tido seu banho-maria e que o anestesiava como se nada de estranho se passasse – tinha de lidar com um prelúdio de sono colonizado pela vizinha hippy e sua trupe. Não conseguia explicar que a ausência de lucidez (tal era o libelo acusatório) fosse consumição só uns meses mais tarde. Era outra insónia que estava à espreita – receou.
A certa altura, a lucidez que não havia parecia medrar o seu contraponto em forma de exercício surrealista. Jurara ter visto a vizinha hippy em roupa interior a cuidar do estendal onde acamavam lençóis floridos com retratos estilizados do Che Guevara. A mulher sem pudor, ostentando as carnes flácidas amparadas pela lingerie que mais parecia de uma manequim contratada para ensaio fotográfico cheio de erotismo. Um cenário dantesco. Ela deixou cair uma mola que veio aterrar no chapéu de coco de um estilista que palmilhava a calçada vetusta enquanto falava em italiano ao telemóvel. O chapéu descaiu três centímetros e descompôs a melena aloirada do estilista (de um loiro oxigenado). Assustado com o troar da mola em cima do chapéu, largou o telemóvel que se estatelou (com estilo, a condizer) entre as frinchas de uma tampa de esgoto. O estilista olhou ao alto e viu a mulher de carnes avantajadas em trajes menores, assoberbada com as lides domésticas enquanto ouvia, através de uns auriculares, talvez Joan Baez, talvez José Mário Branco, talvez Adriano Correia de Oliveira.
O estilista vociferou, perante a indiferença da hippy (que o não ouvia, só notava alguém que do solo esbracejava, iracundo). O presidente da junta de freguesia estava de passagem. Quando o carro parou por à sua frente o camião do lixo fazer inversão de marcha, o presidente da junta notou no burburinho montado pelo estilista. Mediador, como é timbre dos autarcas das freguesias, ordenou ao motorista para estacionar em segunda fila (“e não se esqueça de ligar os quatro piscas, Anselmo”). Já não foi a tempo de travar o estilista de arremessar uma pedra da calçada para a varanda onde estava a mulher indiferente. Deixou de o estar quando sentiu a pedra atingir uma das coxas carnudas.
Esquecendo-se dos pergaminhos pacifistas que quadram com a pose anacrónica, meteu as mãos aos quadris, qual varina de lota, e berrou ao estilista: “olha lá, queres que te despeje este balde de água imunda?”. Ao que o estilista lá se conseguiu ouvir, depois de a mulher tirar os auriculares: “e quem me paga o telemóvel que se perdeu no esgoto, ó senhora?”. A mulher, de cabeça perdida (para enxovalho dos pergaminhos pacifistas), lançou o balde do alto da varanda. No exato momento em que o presidente da junta oferecia préstimos para sanar o atrito. A água não acertou no estilista desafiador. Despejou-se pelo corpo do presidente da junta de freguesia.
Mas tudo não passara de um sonho que foi anunciação do sono que derrotara a insónia. A mulher que ainda vivia religiosamente na década de sessenta merecia a pior das sortes, caso o sonho houvesse perseverado.