28.3.13

Dois gumes


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Era a primeira alvorada sombria. A noite fora mal dormida. Sonhos que pediam meças às obras-primas do surrealismo, ou a andanças por galerias de arte onde desfila a espampanante pop art. A preguiça era motor da inércia. Nem queria espreitar ao espelho quando estivesse a lavar a cara: o rosto devia estar medonho, a atestar pela indisposição que azedava o pensamento.
Podia ser do murro no estômago da experiência de voluntariado na caridade. Podia ser porque um amigo teimava na récita do primeiro-ministro que, desastrado, convidara os desempregados a fazerem-se à emigração. Podia ser do filme com que terminara a noite – um filme cru, despido de emoções e, contudo, que o trouxera às lágrimas por saber que há gente boçal que não se trava de razões com a emoção, gente com a espessura (e a temperatura) de um iglu. A da emigração transtornava-o mais. Pela primeira vez, virou-se do avesso para descobrir se era candidato a procurar outro modo de vida em terra que fosse longe e onde se falasse idioma não dominado.
Andava nisto há um par de dias, o tempo saturado pelas interrogações que desciam do horizonte e fulminavam com raios irados o resto a que se dedicara. As imagens pungentes que o invadiram quando se emprestou à ajuda aos miseráveis que povoam as ruas e delas fazem seu teto não ajudavam a sufragar os dias cristalinos. Era ao contrário: o céu por cima da sua cabeça andava carregado, as nuvens plúmbeas alvitrando trovoadas feéricas, um tempo taciturno que vinha na espuma dos dias ensombrecidos.
Devia emigrar? Dera uma vista de olhos às finanças e, contas feitas, o subsídio pago por estar sem ocupação não deixava muita folga. As ajudas, não contava com elas. Que familiares chegados não os tinha ou, se os tinha, o que menos desejava era incomodá-los. Amigos endinheirados, alguns. Mas o orgulho (que sempre fora seu algoz) não deixava aceitar sequer interrogações sobre o estado das suas necessidades. E voltava à pergunta: devia emigrar? Não tinha os pulsos agrilhoados à terra onde vivia, nem sequer à terra que o vira nascer (que, manda a verdade dizer, era um lugar esquecido). Altivo, julgava-se superior aos que vertem lágrimas de comoção quando ajuramentam a bandeira pátria. Havia os mais próximos que eram, todavia, um frágil laço às origens. Pouco viajado, não temia a incógnita que era abalar para um sítio desconhecido.
O distanciamento aconselharia a emigrar, que a vida se faz árdua para quem perdeu o lugar onde ganhar um salário e sabe que é quase miragem encontrar alternativo lugar para voltar a ganhar salário. Não conseguia entender a resistência à emigração. Se ao menos fosse nacionalista, ou se houvesse uma família a deixar para trás, ou houvesse temor por rumar a terras desconhecidas. Já não sabia de onde vinha o incómodo: se era do paradoxo em que as mãos se ataram (poder emigrar mas não derrotar o estorvo), ou se era por não saber que troco dar à pergunta “devo emigrar?” 

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