4.3.13

O desempregado não foi à manifestação


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Era dia de manifestação. Diziam os líderes sindicais, e os dos partidos que não queriam o governo, que “toda a gente” devia ir para a rua protestar contra governação tão lesiva. Os mais desprotegidos, os desempregados, os que viviam à míngua depois da pobreza fermentada pelo governo. Mas também os que, entre gente com emprego mais ou menos recompensador, estavam menos mal da vida: estes teriam de ir, ao mais que não fosse para serem solidários com os que foram empobrecidos. Este governo – diziam – cometia sucessivos atos de antipatriotismo. Era um governo aviltante. A gente, a “gente toda” (enfatizavam), que viesse às avenidas e ruas das cidades onde houvesse protestos.
Ele soube pela vizinha do terceiro esquerdo. A mulher entradota que ainda vogava nas esperanças do Woodstock, trajando os andrajos a preceito. Ela exclamou, em modo de intimação: “ó vizinho, desta vez vejo-te na manifestação!” Desde que fora involuntariamente alistado na fileira dos desempregados, dedicava todo o tempo às muitas tarefas que o tempo gasto não deixara cumprir. Mal via televisão – e a que via excluía, assim o ditava a sanidade mental, o grotesco desfile da atualidade. Jornais, só os das artes. Mostrou embaraço antes de responder com palavras pendidas entre os dentes: “que manifestação?” Informado pela ativista do prédio, não disse que sim nem que não. Não é que não soubesse que não ia fazer parte da multidão. Mas não quis aturar a verborreia moralista da vizinha. Ainda por cima, agora ela julgava-se possuída de mais autoridade, pois ele tinha caído no desemprego. Só que ele não tinha mendigado comiseração.
No dia da manifestação acordou à hora do almoço. Seguiu uma rotina indiferenciada pelo nada que tinha para fazer. Não ligou a televisão, não fosse bolçar a primeira refeição, feita indigesta pela dança da atualidade. A tarde soalheira mandou-o para a rua. Queria uma esplanada para pôr leitura em dia. Foi a pé para o centro da cidade, lá havia uma esplanada que queria rever depois da hibernação ditada pela invernia agreste. Estranhou a agitação; para fim de semana no ocaso do inverno, a cidade devia estar mais calma. Foi quando se lembrou da manifestação. Não se demoveu dos planos.
Sentado na esplanada, foi notando a diversidade de gente que tinha metido os pés ao caminho da manifestação. A vizinha que parara no tempo do Maio de 68 também por lá passou, acompanhada de outras desocupadas da mesma estirpe. Bruscamente, tomou-o pelo braço enquanto ordenava “vamos lá que a manifestação está quase a começar”. Incomodado pelo desassossego, mas comodista para não se remover da esplanada, sacudiu o braço e, atrevido, disparou: “deixa-me em paz com a minha leitura.
A vizinha e as amigas cercaram-no. Percebeu que as amigas tinham sido informadas do seu desemprego. Ficou aflito com a ideia de que a vizinha se preocupava com ele. Não queria tal incómodo. As cinco mulheres atropelavam-se na vozearia. Não entendia o que elas diziam. Até que uma soltou as palavras com a força dos pulmões, conseguindo discernir na voz ralhada um juízo reprovador: “era o que mais faltava, desempregado como estás e não ires à manifestação. Devias ter vergonha.
Levantou-se e não escondeu o esgar de enfado. Antes de arremeter contra a maré de gente que ia para o lado contrário, perguntou às mulheres que o atormentavam: “era o que mais faltava ser obrigatória a presença na manifestação. Afinal, onde está a liberdade que vocês apregoam?” As vaias ficaram nas suas costas à medida que, agastado, se ia embora. Ainda conseguiu ouvir um impropério. Uma das varinas ideológicas chamou-lhe fascista.

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