26.3.13

Uma procissão por dentro (I): a caridade


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Tanto era o tempo para matar que, para não se entediar com o tempo em decaimento, cada vírgula do tempo era pretexto para a conceção criativa. Estes meses de sobra de tempo foram pródigos em funções que deixaram de estar adiadas, em funções algumas desconhecidas, em atividades inesperadas que de um nada vieram à superfície. Um tempo de uma fecundidade singular.

Nos interstícios do tempo madraço, ao juntar as mãos na empreitada de não deixar que fosse uma ceifa audaz que reduzisse a nada o que ainda sobrava, o pensamento fervilhava. Foi quando descobriu outra empreitada: contar as tarefas de que fora contumaz. Há quem vá às Índias com a contenda da calibração interior. Não foi tão audacioso – e não era por não acreditar nos predicados medicinais das Índias que houvessem; era mais modesto nas intenções (talvez os réditos em míngua fossem o trunfo a pesar).

O lápis pendido entre os lábios ajudava à conceção da lista que seria bússola doravante. Uns instantes depois, já escrevinhava no guardanapo amarrotado que fora pedir à esplanada ao lado: “caridade”. Admitia a ausência. Alguns dos mais próximos já tinham esfregado no rosto como se de uma bolorenta censura social se tratasse: ele não tinha sensibilidade para os miseráveis. Norma, era indeferir comiseração que entrava nos olhos pela mendicidade de rua. Norma, era ignorar campanhas de solidariedade montadas à porta dos supermercados. Norma, era nem abrir a porta de casa quando do outro lado se anunciavam pedintes para ajudar crianças mortificadas pelo cancro ou órfãos que careciam de alimento. Estava habituado a passar pelos mendigos que se abrigavam sob pontes e viadutos ou nas soleiras de prédios cêntricos sem sentir sobressalto.

Talvez os mais próximos que acenavam a desaprovação estivessem ungidos pela razão. Não estava seguro (fugia da razão quando podia). Os olhos detinham-se na palavra “caridade” reavivada pelo lápis desgastado que já tinha passado um par de vezes, redesenhando-a a preto forte. Reavivando a procura pela experiência que reclamava participação. Assim como assim, recordava-se que há dias ficara com o olhar aferrolhado à oferta de comida e bebida quente que voluntários faziam aos sem-abrigo que enganavam o frio da noite invernal. Talvez fosse um sinal.

Guardou o papel que seria arquivo das intenções do que jamais fora feito. O primeiro desafio estava congeminado. Cuidaria, de seguida, de o tornar possível.

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