27.3.13

Uma procissão por dentro (II): a caridade


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Logística tratada. O que julgara ser o maior obstáculo à caridade no terreno, pois nunca fora seu forte ser metódico. Uma vez que se convencera que tinha de experimentar a caridade por dentro, sabia que não podia ir sozinho na aventura. Tinha de se juntar a um grupo de voluntários que percorre as ruas da cidade oferecendo alimento quente e agasalho a quem vive sem teto. Uma amiga tratou da logística. Ela tinha uma prima que era voluntária habitual numa dessas organizações.

Combinado dia e hora numa reunião onde foram ensinados preceitos básicos, juntou-se à equipa de voluntários. Sem grande entusiasmo. Meteram-lhe um colete refletor no dorso, o colete de cor tão garrida que agredia os olhos, ostentando nas costas o dístico da organização (uma ave alva segurando pelo bico um alforge de mantimentos). Meteram-se pelas ruas, obedecendo ao trajeto estudado. A cada paragem, os voluntários como ele desciam da carrinha e emprestavam-se ao frio e à chuva. Até a meteorologia estava a preceito da provação a que se convencera dar. As bátegas de chuva sacudidas pelo vento proceloso entravam até em sítios escondidos do céu. No ir e vir entre a carrinha onde estavam os mantimentos e os sem-abrigo que se mantinham recolhidos, estava com o rosto ensopado. Não tiritava de frio porque os trajetos cá e lá e o peso dos descarregamentos eram tarefas penosas.

A paisagem de necessidade, que não mudava a cada recanto povoado de mendigos, um desafio para os sentidos que andaram ausentes. Havia momentos, no repouso entre duas entregas, em que era assaltado pela acusação de alguns dos mais próximos que não entendiam como podia ele ser insensível à indigência dos desprotegidos. Jurara que não ia contar aos mais próximos que aquela noite fora de alistamento nos voluntários que aliviam as dores básicas de quem andava arredio da fortuna. A experiência não era para provar nada a ninguém. Só a ele próprio.

As horas pela noite dentro foram pródigas em misérias várias. Viu gente de todas as idades. Uns em estado adiantado de decadência, outros em recente divagação pela comiseração. Uns que precisavam tanto de alimento e de agasalho como de alguém que escutasse as angústias em carne viva. Outros que pareciam ter desaprendido a comunicar com outra gente. Alguns que, de tão doentes, não tinham sequer força para sair do ninho e recusavam o alimento quente. Num canto fétido que era refúgio para meia dúzia de pessoas, uma mulher velha e mirrada pegou-lhe no braço enquanto recebia a sopa quente, a marmita com o prato do dia e um cobertor lavado. O olhar marejado era sofrimento e gratidão. Balbuciou ao ouvido: “meu filho, não te entregues à má sorte. Aqui o sol é sempre negro.

Deitou-se, já a madrugada se anunciava. (Depois das entregas tivera de participar num briefing que fazia o balanço da noite.) O cansaço era tanto e, todavia, o sono ausentara-se. Em sintonia com a indiferença com os miseráveis. Que saiu reforçada depois da experiência de caridade que fora desafio para saber melhor de que têmpera era feito. Confirmara-se a sentença implacável dos mais próximos: não tinha propensão para as maleitas que açambarcam tantas vidas despojadas nas ruas frias e húmidas. E nem os sentidos agredidos, depois do tanto que vira, chegavam para mudar de ideias.

Podiam todos dizer que era egoísmo. Não interessavam os juízos alheios. Preferia a sanidade mental. Que andaria transtornada nos dias que se seguiram. A todos os telefonemas da organização, fez de conta que não ouviu. 

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