12.4.13

O Aníbal morreu


In http://1.bp.blogspot.com/-_FeD3SyFXRU/UPnbAV4TM8I/AAAAAAAAwRQ/sKheLc9Fh-E/s400/Telegrama.jpg
A meio da tarde, passeava pelo convés sem nada que fazer, um marinheiro berrou pelo seu nome desde o varandim da torre de comando. Telegrama para ele. Um sobressalto. Só podia ser notícia de catástrofe, que as boas não chegam sem aviso. Lembrara-se de dar a um punhado dos seus mais próximos o contacto do barco, não se desse o caso de alguém morrer e ele nem chegar a saber. Os pais já andavam em idade avançada, quando uma maleita vem de repente e noutro repente desembaraça a gente da vida. Se tal acontecesse, podia ser que não estivesse longe de um aeroporto e ainda viesse a tempo do adeus derradeiro.
Subiu as escadas da torre de comando em trote acelerado, tão acelerado como o batimento do coração. Pegou no papel, ainda esbaforido, notando que os outros à sua volta já o olhavam com olhar piedoso (estavam acostumados ao ar sisudo de quem recebe a bordo notificações de falecimentos). Era o Carlos que mandava dizer que o Aníbal tinha morrido.
Pelo meio do sossego que veio de volta (não tinha sido o pai ou a mãe), não chegou a sentir pesar. Pelo sossego que regressou e por não ter sido invadido por comiseração. Nem que o Aníbal tivesse a sua idade – e nesta idade era ainda cedo para estes adeus, o que podia fazer levitar a comiseração. O Aníbal era amigo de infância que, quando os caminhos se transviam e as pessoas deixam de se frequentar, passou a ser apenas uma memória da infância e da adolescência até ele ter escolhido uma espiral de catástrofes. Tinham amigos em comum. E estes é que viam o Aníbal amiúde. Ele encontrava-o por acaso, com uma frequência repetitiva que até fazia crer que a grande cidade era um lugarejo onde todos tropeçam nos outros. Foi espetador da decadência do Aníbal. E de cada vez que se encontravam, trocavam umas palavras. Ou melhor, era um monólogo de lamentações do Aníbal, que fazia questão de narrar as últimas peripécias. Foi assim que soube que o Aníbal se metera nas drogas duras, que andara pela prisão duas vezes, que estivera com a vida por um fio depois de uma rixa, que já fora casado quatro vezes e tinha sete filhos de três dos casamentos, e o mais de desgraças que foi contando sempre que esbarravam um no outro.
A última vez que viu o Aníbal, ia cheio de pressa no seu Peugeot a cair aos bocados, com um ar tresloucado que deixava adivinhar o pior. Notou que o para-brisas do carro estava esburacado do lado esquerdo, os raios que saíam do orifício deixando perceber que fora uma bala a estragar o vidro. Olhou para o resto do telegrama. Só depois é que juntou as pontas: o Aníbal tinha sido alvejado a tiro de metralhadora.

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