29.11.13

Rendez-vous

In http://farm3.static.flickr.com/2678/4368142147_224a1512b9.jpg
Julgava-se náufrago. Não era condição invejável. Também não era condição a desprezar. Um náufrago que sabe ser essa a sua condição é um sobrevivente. Traz estórias para contar
Julgava-se um náufrago. Errando pelo mar imenso, empurrado para onde as correntes queriam. A sua pequena jangada, pequena mas coriácea, fazia companhia. Tudo o que queria, depois de tanto tempo embarcado na sua solidão, era avistar um pedaço de terra ao longe para, ato contínuo, desembolsar o exíguo vigor na força braçal que, a nado, o estimasse à terra firme.
Em sonhos, tecia planos. Haveria de construir, com as suas próprias mãos, uma cabana que o protegesse das intempéries. Haveria de a ornamentar com orquídeas, se orquídeas houvesse na terra aportada. Haveria de fabricar as artes de pesca e as de caça para que se pudesse alimentar. Haveria de arranjar maneira de passar ao papel as memórias enquanto náufrago, ou as memórias enquanto habitante singular da ilha que o tivesse recebido como abrigo. Haveria de contar as estrelas ao anoitecer, deixando os olhos fixar-se nas linhas imaginárias que teciam pontos em forma de figuras míticas. Seriam essas as figuras que consideraria suas protetoras. Com elas falaria, por precisão de falar. Para não desaprender a fala.
E haveria, um dia, de lobrigar uma sereia ao longe. Extenuada e ferida por um arpão de um baleeiro, esvaindo-se em sangue. Haveria de ser seu guardião, tratando-a com esmero de enfermeiro. Trataria de arranjar jarras e de as dotar de abundantes flores, das mais garridas cores e com os perfumes extasiantes. Porventura, enamorar-se-ia da sereia. Haveria de a devolver ao mar mal estivesse convalescida, que o habitat de uma sereia não é o areal que bordeja o mar e o amor não é um cárcere.
Não sabia se haveria de aspirar a ser encontrado, nem que fosse anos depois, por uma expedição em demanda de terras virgens que o devolvesse à terra sua. Ainda sob os auspícios do sonho augurado pela jangada que era testemunha da sua solidão, sentia o pensamento arqueado pelo peso da incógnita a que não conseguia oferecer resolução. E nem sequer houvera o rendez-vous com a terra ainda mirífica.

28.11.13

Ter medo de ter medo do escuro

In http://mscamp.files.wordpress.com/2010/04/quarto-escuro.jpg
É a maior coragem. A maior lucidez. Quando à frente dos pés está uma baça cortina de um tecido espesso que não deixa ver o que se encontra do outro lado. E quando a saciedade do conhecimento destrava o apetite pelo saber (sobretudo quando o saber é saber fazer interrogações), por simples desconfiança que do novo desponta o amanhã em sua diferença. A cortina baça é o sicário que encomenda a sede de conhecimento às trevas de um deserto qualquer.
Podem alguns, com a coragem dos forcados que vão à cara do touro, proclamar que de nada têm medo. E que seriam diligentes se afocinhassem nos corredores ensombrecidos pela penumbra que só deixa à mostra uns vultos disformes. Podem puxar o lustro à coragem néscia, que através dos corredores ensombrecidos apenas vêm o nada que é fermento das trevas. Talvez não se importem de vegetar na agnosia. Talvez lhes seja mais excitante a exibição de glória de quem entrou no escuro labirinto e dele saiu incólume. São os que recusam atravessar pontes, pois firmam os pés no lado que julgam ser sua pertença e desprezam o outro lado que se descobre quando o corpo arremete pela ponte. Coragem desta laia é lacaia da indigência.
Os mandantes, sobretudo os que cavalgam no trémulo estado de insegurança própria, não se inquietam com a escuridão. Porventura gostariam de demorados eclipses. Ao menos a turba seria sossegada, pois na escuridão prefere descansar o corpo no labéu do sono. Ter medo do escuro é lúcido. É quando a voz de protesto, ainda que silenciada no íntimo do ser, é o maior desafio aos próceres do pensamento de perna curta. Ter medo de ter medo da escuridão medonha não é reflexo condicionado. É quando se embolsa a maior das coragens, não da coragem espúria dos valentes que só conhecem a razão da força e nem dão conta de como a sua putativa grandeza é a mais mesquinha miudeza.
A noite tem outras serventias. Pois os olhos vendados pelo sono não partem – não podem partir – em demanda do conhecimento.

27.11.13

Desmundo

In http://www.eat-drink-etc.com/uploads/Black_Moon_BG.jpg
Os corpos contorciam-se. Arqueados, capitulavam perante a dor terrível que os consumia. Ninguém percebia por que assim se debatiam. Os olhos nublados não distinguiam as cores que vinham do horizonte. Os vultos em redor, deformados nas suas silhuetas, também pareciam arrebatados pela consumição da dor. As árvores viraram as raízes do avesso. As ondas do mar desembrulhavam-se de fora para dentro. Os ponteiros dos relógios começaram a andar trás. Os pássaros, à mão de semear pois não conseguiam assisado voo. Os ladrões arrastavam-se pelo chão em demanda da claridade, julgando que a apoplexia se devia à escuridão do esconderijo.
Os verbetes, escrevinhados em letra trémula, pontuavam a perplexidade. Seria um ataque químico, os músculos quase paralisados depois de breve dor lancinante? Num ápice fez-se noite – e a hora arrastada para trás pelos ponteiros rebeldes dos relógios não quadrava com a deposição da claridade diurna. Tão depressa a noite tomou conta do céu como depressa o deixou imerso em sua luminosidade. Só se ouvia o miar esganiçado dos gatos e o uivar demencial dos cães. A terra tremeu sob os corpos dobrados sobre si mesmos, todos deitados no chão. Nos carros, havia quem conseguisse ligar o rádio para saber que emergência era aquela. Mas os rádios só debitavam um irritante ruído de fundo, não havia humanas vozes, nem música sequer, tomando conta das frequências.
Não se sabe ao certo quanto tempo depois, os corpos saíram da sua contrariada rigidez. Depois da hibernação, não sabiam do lugar em que estavam. Menos ainda era a noção do tempo que era (a memória fresca ainda evocava os ponteiros dos relógios na sua marcha às arrecuas). As pessoas começaram a falar umas com as outras, pareciam conhecer-se de longa data mesmo as que eram desconhecidas. As estações de rádio e televisão continuavam emudecidas. Os líderes, também recuperados do torpor involuntário, procuravam fazer o ponto da situação. Não havia respostas às muitas perguntas. Nem as câmaras de vigilância, as tantas câmaras de vigilância que sinalizavam o Estado policial que medrara, ajudaram: também estiveram mergulhadas no nada. Ainda imersas no pânico da desorientação, as pessoas só conseguiam notar que aquele tempo em forçada hibernação talvez tivesse selado um temporário desmundo.
Algumas, resgatada a lucidez antes das demais, perceberam que houvera uma rutura. O desmundo fora dantes. A impassibilidade de tudo deixava à mostra a diferença. Não era o desmundo que viera depois da hibernação contrariada. O desmundo fora o dantes.

26.11.13

O gato vadio

In http://4.bp.blogspot.com/_5bNZgLL_b1w/Sc4ClLTHajI/AAAAAAAAA9s/gaS3v5Tx-HY/s320/gato+vadio.bmp
Corria riscos. De ser atropelado por um carro destravado, a meio de uma correria também destravada de um lado para o outro da rua. De ser apanhado pelos homens do canil, que tinham uma rede com malha apertada e uma manha caçadora que assustava os companheiros. De ser envenenado pela fome, que um gato de rua tem de deitar o dente ao primeiro mantimento que estiver à mão de semear. De ser apanhado por uns galfarros estouvados, e sabe-se lá que malfeitorias estariam dispostos a praticar. De dormir ao relento em dias de invernia cingida, com o frio a espalhar doença pelos pulmões. De lamber as feridas em combate, depois de uma luta com um gato outro pela posse do território reivindicado.
Eram riscos excessivos. A vadiagem trazia este preço atrelado. Mas não era vadio quem queria naquela comunidade onde a convivência gatil era pacífica, interessadamente pacífica. O espaço livre e o alimento que umas velhinhas generosas depositavam sem faltar um dia que fosse adulteravam a natureza da espécie. Aprenderam a serem comunidade. Eram todos como os palhaços feios da companhia circense: ninguém os queria para companhia. Sobrava o fado de serem vadios até deixarem de serem vivalma. Alguns sussurravam o sonho, pastoreado durante o sono, de serem adotados por uma família carente. Eram os mais tresmalhados. Não os entendia. Como podiam trocar o ar livre, a liberdade do espaço aberto, pelo espartilho de um lar?
Ele não queria. Preferia o torniquete dos riscos a ser refém de um lar claustrofóbico. Desdenhava dos pachorrentos da espécie que espreguiçavam à janela dos apartamentos enquanto retesavam o corpo no sol filtrado pelas vidraças. Como podiam esses gatos ser tão poltrões? Como podiam atraiçoar a natureza da espécie a troco de uma cama lavada, alimento sensaborão e sempre igual, ausência de pulgas e vacinas em ordem?
Tinha orgulho na sua vadia condição. Ninguém lhe deitava mão. Ninguém o enclausurava na contristada maneira de passar o tempo sempre igual. Não trocava dez anos de entediante refastelo por um único ano da vida que sabia ser.

25.11.13

Façam o favor (às esquerdas aflitas) de serem violentos

In http://www.eb1-sede-2.rcts.pt/justica%20de%20fafe.jpg
O patriarca convocou as hostes. Elas apareceram. Para inveja do jovem eurodeputado que inventou, no fim de semana passado, um novo partido de esquerda que, em vez as unir (como ele tantas vezes clamou em prosa opinativa), vai dar para o peditório do desentendimento possível entre as várias fações. O patriarca ainda tem uma força impressionante. Tenho de o admitir. Conseguiu juntar as fações das esquerdas num congresso preparado para malhar nos ossos do governo, acusando-o das piores malfeitorias, chegando ao ponto de certificar que vem aí uma nova ditadura (sem explicar se, com a ditadura embrionária, seria possível ao patriarca a incontinência verbal que o distingue), para anunciar às hostes que as esquerdas são o único bastião possível do patriotismo. As voltas que o mundo dá! Agora as esquerdas é que esbracejam a bandeira do patriotismo.
Seria risível, se não fosse inquietante, o apelo sibilino do patriarca à violência das massas contra quem as governa. Logo a seguir foi acolitado por uns abencerragens, que depressa, num ato de contrição, desdisseram o que acabaram de dizer. Primeiro espalharam a confusão, pressagiando a erupção da violência contra a má governação que vai aos bolsos e aos direitos adquiridos do povo, atalhando no Estado social e na sacrossanta Constituição. Logo a seguir posicionaram-se no arrependimento, ou talvez apenas na hipocrisia de quem não quer assumir as consequências das suas palavras. Como quem adverte: “não me entendam mal. Eu não patrocino a violência do povo, só estou a avisar que ela pode acontecer.”
O problemático é este povo manso. Faz umas manifestações, com o alto patrocínio dos agitadores do costume. Mas de violência, nada. Se houvesse dúvidas, os sociólogos tiravam-nas a limpo. Se nem com este estado de emergência, com tantos apelos hábeis das esquerdas aflitas, o povo desesperado mete as mãos à obra e “descasca o pau” nas costas dos mandantes (como sugeriu, sem meias palavras, o mais apedeuta de todos eles), é porque somos sociologicamente um povo brando.
A confusão nas ruas dava jeito às esquerdas. A insegurança, sobretudo sobre os poderosos e os mandantes, também. Enquanto, e se, a violência não vier para as ruas e não amedrontar os que são desgoverno e os ricos, sobram uns patetas desocupados e uns militantes de esquerdas várias a pressagiá-la. O povo, se fosse ouvinte dos gurus das esquerdas, já devia estar por aí organizado em comités clandestinos para praticar a violência que os gurus queriam que fosse.
E eu, perante um governo tão mau, quase tenho um suicida impulso para ser seu apoiante, ao ver como as esquerdas são ainda piores.

(Falta esse grande quase, contudo.)

22.11.13

Agora

In http://www.abakanowicz.art.pl/recent/img/agora3ok.jpg
Estilhaçamos os espelhos que são cerco aflitivo. Despedaçamos os espelhos em pequenos vestígios. Se preciso for, esmagamos o vidro restante até apenas sobrar uma poeira que ninguém saberá se é feita de vidro ou de outra matéria. O lado contrário do sol, onde subsistem penumbras duradouras, é a matéria vegetativa. Onde já não se encontra o oxigénio imprescindível.
Olharíamos para trás, ensaiaríamos o resgate de reminiscências. Mas só se nos esquecêssemos que agora é que importa. Agora, com as cambiantes voláteis, com as cores que emprestam sentido estético aos atos e às palavras, com as outras, diferentes, que se embaciam e semeiam melancolia no olhar. Não importa o dantes, nem o amanhã que nunca sabemos se vem a ser nosso. E, todavia, às vezes insultamos o agora que é nossa certeza superficial – mas a única que somos capazes de emoldurar.
Os exércitos promitentes de radiosos futuros marcham lá fora. As botas cardadas, audíveis, entoam o passo compassado que é parecido com uma marcha militar. O céu noturno vem pintado por estrepitoso, colorido fogo de artifício. Os rostos que saem à rua são sorridentes, encantados com a promessa de futuro que gurus certos encomendaram a notários. Sobrepondo-se à marcha militar, uma orquestra de metais oferece partitura para deleite dos ouvintes. As pessoas dão-se as mãos, mesmo as que não se conhecem. Amesendam nas esplanadas aquecidas pelos itinerantes aquecedores, enquanto a festa enfeita a noite larga, que não deixa de ser larga por ser invernalmente fria. Gente responsável, os rostos conhecidos por tanto se darem a ver nas pantalhas da televisão, discursam oratórias convincentes. Ajuramentam as loas do promitente futuro sem mácula. A gente anónima, embebedada por tanta folia, sente-se penhorada pela esperança assertiva no amanhã que espreita na esquina de onde se oferecem os dias vindouros.
Mas há resistentes. Gente desconfiada da incógnita aferroada no tempo desconhecido. Lá, na aberta ágora onde está o ajuntamento de gente exultante, distinguem-se três, quatro, cinco rostos fechados, omissos sorrisos, olhares afivelados num horizonte perdido. E, todavia, são os maiores otimistas. Tutelam o agora. Pois sabem que agora é a única promessa que as mãos podem medir. A falta de memória trata de obnubilar as luas fartas que se prometeram num tempo em que o porvir foi tratado num pretérito qualquer.
Ao menos, agora é revelação instantânea. Não aceita astúcias. É o espartano imperativo que não desengana.

21.11.13

A má semente

In http://img.rtp.pt/icm/thumb/phpThumb.php?src=/cinemax/images/5d/5d7e8753e3cf647100180c095567b5ed&w=645&sx=28&sy=0&sw=1864&sh=1080&q=75&w=624
Houve uma vez, em leituras aleatórias, que esbarrou na lei de Gresham: “a má moeda expulsa a boa moeda”. Em moeda não sendo – pois sobrevivia em monástica provisão – não coube em si de perplexidade em notando a analogia com o seu testemunho interiorizado. Em não sendo moeda, sabia-se má semente. Os demais atiravam-lhe o opróbrio da viuvez das almas, pois era voz corrente que onde assentava demão tudo se decapava mercê da sua corrosiva retórica. Seria ele a má semente que expulsava a boa semente?
Era alma vertida em sua própria solidão. Atirado para um canto onde se arrumavam os proscritos, os desfigurados da normalidade. Dizia-se das más sementes que contaminavam as boas. Os bons cortavam o mal pela raiz, não fossem as daninhas sementes ungir as terras quase todas e poucas das boas sementes sobrassem para amostra. Os faróis da beatitude, com frontispícios em narrativas acomodadas e em filmes venturosos, não podiam admitir tamanha heresia. O lugar onde viviam tinha de ser exemplar. Só paradigmáticas ações, daquelas que se ensinam nas escolas quando os mestres atalham pela diligente moral.
Às más sementes ficavam reservadas as penumbras que as boas sementes não ousavam espreitar, não viessem de lá infetadas com sedimentos amaldiçoados da insistente perfídia. Como má semente, jamais se intimidou. Nunca quis que alguém fosse promotor da sua extração às trevas. Nunca quis a luminescência, temendo, ele próprio, que a natureza de má semente fosse corrompida pelos ágeis anjinhos que, de asinhas bem compostas, untavam a atmosfera com as pétalas perfumadas da indulgência.
Aprendeu a escapulir-se na noite mais escura, por entre ruelas acanhadas, a coberto das vivalmas que pudessem aparecer. Aprendeu que essas ruelas peçonhentas só eram visitadas, pela madrugada avançada, por outras más sementes. Conviviam todas em silêncio. Não socializavam, pois a intuição ensinara-lhes que à sua socialização podiam sobejar intenções conspirativas assim entendidas pelas boas sementes assombradas pela perene suspeição. E, todavia, não eram as más sementes que aspergiam a traição, que perfecionavam os instintos maldosos (a coberto do eufemismo do “instinto de sobrevivência”).
Mal por mal, já sobejavam os limites de si que eram maiores do que as medidas onde cabia.

20.11.13

Fora do aquário

In http://2.bp.blogspot.com/_CQVhSXm94zA/TG_J0w8JMMI/AAAAAAAABJM/hB5Hn0hAJ8Y/s320/peixe.jpg
Desambientação. Como seria se os peixes transbordassem do aquário. Transbordar, se entendido como uma forma de transgressão, receberia os aplausos dos amantes da fecundidade que destoa com a rotina. Mas nem a todas as luminosidades correspondem fruições dos sentidos. Há presentes envenenados. Ambientes que parecem feéricos, onde muitos aspirantes adoravam habitar, mas meros lodos onde os pés se arrastam.
Uns, iludidos com os holofotes, com a luminosidade atrelada à artificialidade inata, insistem e voltam à casa da partida. Não dão conta como é artificial este ambiente. Outros, enamorados pelo engodo da visibilidade, incautos que não suspeitam das dores da perda de anonimato, emprestam-se ao ambiente fora do aquário e habituam-se à pungência. Fazem de conta e ambientam-se. Inventam defesas que os protegem contra as aleivosias do artificial ambiente. Mas há outros, empurrados pelas circunstâncias, ou desapossados do anonimato por vontade a si alheia, que são órfãos em terreno hostil. São os peixes que transbordaram do aquário, ou os peixes retirados ao seu natural habitat e que esperneiam, com as energias que ainda sobram, contra a desambientação a que foram forçados.
Uns são vítimas do ambiente que é um punhal metido fundo na carne. Exauridos de sangue, perecem no ambiente que lhes é corpo estranho. Outros ensaiam movimento adaptativo. Emulsionam o reflexo condicionado, imitando os autómatos que sobrevivem em modo anódino. Servem como circenses elementos que alimentam a bazófia dos protagonistas. Aprendem a respirar fora do ambiente para o que foram nascidos. Confirmam os preceitos da biologia adaptativa. Tornam-se num ser que já sabe viver fora do aquário. Engrossam o exército, o cada vez mais numeroso exército, do ambiente fora da água.
Os que capitulam ao exercício adaptativo pagam, se preciso for, bilhete de regresso ao aquário de onde foram resgatados. São os que capitulam e entretanto souberam resistir à provação da sobrevivência. Uma vez devolvidos à agua a que pertencem, não lhes interessam os juízos de valor. Não são algozes do ambiente deslocado que experimentaram. Ditam infausta a experiência, mas reservam-lhe um irrelevante estatuto. Limitam-se a olhar para dentro de si e a contemplar a água morna e límpida onde se alojam. O resto, não importa.

19.11.13

Infinito no olhar

In http://wallchips.com/wp-content/uploads/2013/08/Infinito-Love-Logo-Original-Full-HD.jpg
Não era por mal. Às vezes estacionava numa lua qualquer. Não por andar em demanda de uma dimensão cósmica. Era a dimensão cósmica que se apoderava da sua lucidez. Divagava. Com a calma de quem plana na brisa impercetível. Com a paz de espírito de quem se gaba de não haver sobressaltos que o apoquentassem.
Não era um ensimesmar. Não era distração. Era diferente. Era como se houvesse uma alteridade, várias alteridades. Como se uma verticalidade de sentidos múltiplos ocupasse o pensamento. E, contudo, não sabia dizer que espessura tinham essas verticalidades, que cores delas irradiavam, as danças que os seus querubins ensaiavam. Só sabia dizer que não era por mal. Só sabia que tinha vários mundos na maresia da imaginação. Ficava absorto, como se entrasse em hibernação.
Às vezes esbarrava em postes de eletricidade que se atravessavam no caminho, enquanto a rua era pasto para as dimensões múltiplas em que se encerrava. De outra vez saiu à rua para deitar o lixo e não deu conta que estava em trajes menores, nem quando três raparigas imberbes gracejaram. Nessas alturas, tinha uma venda nos sentidos. Era uma ilha onde todas as águas, em rodeando a ilha, não a chegavam a beijar. Umas vezes, julgava-se astronauta (que o imaginário infantil não descolara das imagens de televisão em que a alunagem passara). Outras vezes, era pescador no mar do norte, só para ostentar a bravura de quem ousava desafiar a meteorologia indisciplinada. Ou peregrino aspergindo bondade por aqueles que viesse a descobrir que ficavam à margem da bondade distribuída. Ou piloto de aviões, saltitando de aeroporto em aeroporto, num nomadismo infecundo. Mas depois aterrava dos sonhos que sonhava à medida que os olhos se consumiam no tempo gasto. Era quando a lucidez derrotava a ilusão de todas as verticalidades que só tinham sentido no lírico arrastar de ossos pelos interstícios do tempo.
Não era por mal. Não era por mal. Chamassem-lhe distração. Lá por dentro, julgava saber que era apenas um lunático em ilógica lógica.

18.11.13

O olhar por dentro

In http://3.bp.blogspot.com/-xJCOMXofbts/T3ebZHF1igI/AAAAAAAACSQ/17bSdZjd6wc/s1600/satelite.jpg
Outra vez o avesso a virar-se ao contrário. Para tudo ficar à mostra, como se fosse possível tirar todo o património de dentro e essa genética se expusesse à observação de quem se interesse. A começar pelos olhos próprios, que também saltam das órbitas que os acolhem para se refugiarem no necessário distanciamento quando demandam pela natureza interior.
A empreitada não é menor. E a empreitada é árdua, em sendo dolorosa a extração do olhar às raízes que o mantêm, para depois se desprender como se os olhos deixassem de pertencer a quem são. Mas há dores necessárias. Dores que é preciso passar para depois acostar a um Rubicão qualquer. Nem que o cais onde o olhar aporta seja um cais imundo, sombrio, acanhado, onde as pessoas que por lá transitam são boçais e rudes, com a severidade desembainhada logo que sentem o odor a desconfiança. Ou que o cais seja açambarcado por gestos de bondade, mesmo quando a bondade se esconde nas alcáçovas da indiferença e todos os que são transientes deste lugar sejam desconhecidos.
O olhar saído de si, deitado num refrigério que é o exterior de onde foi extraído, começa a ler o que é protagonismo de si mesmo. Persegue as palavras alcançadas, interroga-se por que outras que deviam ter sido ditas ficaram sitiadas pelo silêncio. O olhar devolvido ao exterior de si mede a distância do corpo seu, sente a febre do pensamento que não deixa de latejar mesmo enquanto devia estar preservado pelo sono medicinal. O olhar sente que a tempestade cerebral, perene como é, é maleita em vez de ser dom. Se o olhar, mesmo em exterior deambulação, conseguisse tomar contacto com uma qualquer espiritualidade, ensaiava preces para que o pensamento frenético arrefecesse.
O olhar que o vê de fora fica cansado da função. Por vezes sente orgulho nas imagens que passam diante da tela. Outras vezes envergonha-se, intimida-se com as pedras pontiagudas que foram seu rasto. O olhar exterior não tem razões para se entristecer depois da demorada função. Não resiste à suicidária pulsão, talvez inata à condição da espécie, de sobrepor o valor das veredas malsãs ao das empreitadas soberbas.
Quando regressa a si, extenuado, o olhar deita-se num sono ajuizado.

15.11.13

Em terra de cegos, quem tem olho...

In http://www.poesias.omelhordaweb.com.br/img_poesias/58855_gr.jpg
...“é rei”, certifica o povo, de quem se diz ser sábio. A monarquia fez as pazes com a democracia.
(Eu sei que há monarquias que sobrevivem à democracia; mas uma monarquia, com o beneplácito divino da sucessão dinástica, é um travão à democracia quando ela quadra com a vontade popular maioritária.)
Às explicações: com a vulgarização do espaço público virtual, qualquer um se torna comentador (ou, na maior parte dos casos, comentarista). E como a cada um é dada uma presciência que o coloca num patamar elevado de onde vigia os comuns dos mortais que contraíram matrimónio com a indigência intelectual, acha-se dono de um singular olho que, contudo, aprecia mais do que o lupanar onde vegetam os cegos.
Impressionam-me os comentaristas cheios de certezas categóricas. Aqueles que vêm, mesmo debaixo do seu nariz, o que a muito poucos é dado a entender. São tutores da moral, tentando impedir que ela se despedace como sinal dos tempos de decadência. Eles bem alumiam a centelha por onde devemos fazer o caminho. Mas os cegos estão adormecidos na sua cegueira. Não se importunam com as coisas graves da governação, nem quando são torturados como sucede com estes tempos decadentes. Em chegando eleições, a grande maioria dos néscios continua a desvalorizar as palavras avisadas dos sábios, teimando em renovar os votos nos que deviam ser acusados de governação danosa. Podem estar desgostosos com o matrimónio que contraíram com os indigentes. Na dúvida, preferem renovar os votos que perpetuam os indigentes. Os lúcidos, do alto da sua visão acutilante, servida por uma sabedoria inacessível ao comum dos mortais, denunciam os atropelos inadmissíveis e protestam contra a incompetência genética. Ainda não entenderam que o povo soberano é da mesma linhagem.
Os possuidores de olho judicioso andam a pregar no deserto? À falta de uma oligarquia de prescientes – que seria uma oligarquia abundante, a crer no exército numeroso de gente sábia que discorre comentário sobredotado –, sobra a resignação. Têm de admitir que não conseguem ser notáveis educadores da cidadania. A indigência dos cegos não se dobra a não ser com meia dúzia de gerações em sucessivo passar do tempo. Ou podem emigrar para terras distantes, onde tudo seja perfeito. Hipótese que teria, na minha modesta maneira de ver, a vantagem de nos livrarmos de sacerdotes que eructam uma cansativa superioridade moral.
Os moralistas desatam suspeição: tenho-os na má conta de patrulharem a moral dos outros porque não devem suportar a sua própria imoralidade.

14.11.13

Thin lines

In http://th05.deviantart.net/fs70/PRE/i/2011/075/1/f/flowers_on_a_thin_line_by_justthorvald-d3bs0yc.jpg
Falávamos da fragilidade das coisas. Mesmo das que exibem uma robusta ancoragem e deixam à mostra os alicerces firmes em cujo dorso se deitam. Podemos olhar para o universo onde desfilam as estrelas. Diz-se que as estrelas são eternas. Os cientistas desmentem mitos: as estrelas perecem. E as estrelas, podemo-las achar objetos que pertencem à categoria dos objetos ungidos com firmeza.
O rapto do tempo futuro pela incerteza que o embebe desonera-nos de responsabilidades nesse tempo. Pisamos linhas ténues, mesmo quando elas parecem largas avenidas onde centenas de corpos se podem deitar uns ao lado dos outros. Não nos achemos amedrontados pela vingança do tempo futuro. Não deixemos hipotecar o único tempo que é nosso, o tempo de que temos conhecimento: esse mesmo tempo, efémero, que se consome na instantaneidade dos momentos repetidos. Podem ser ténues as linhas; andemos sobre elas com a destreza que os artesãos do equilíbrio instável usam em cima do trapézio. A coragem vem de dentro de nós. Não temos de olhar para baixo. Não devemos olhar para baixo. O precipício, onde se entrelaçam as ondas adulteradas do pretérito, fermenta sondagens vertiginosas. E se as linhas, por serem ténues, são ingrediente de precário equilíbrio, não somemos outros nutrientes com a teimosia de aproveitar o tempo que já não colhe aproveitamento.
As avenidas largas, onde os ecos se perdem na lonjura, são hospedagem que torna os precipícios maus conselheiros. Não varremos o tempo pretérito do seu condomínio por mera vontade, como se fosse possível coalhar a amnésia nesse tempo que se ausentou. Não: não recusamos o património que deixámos atrás de nós. O património é uma parte grande do que hoje trazemos em nós. Mas não podemos entregar a cautela que encerra o doravante de cada vez que espreitamos entre a ora estreita, ora larga, fechadura que sepulta o tempo de antanho.
As coisas, as palavras, os sedimentos, os olhares, os gestos, os momentos: tudo se entrega sem remissão ao império da fragilidade, tão próprio do decaimento da natureza, humana ou não. Não é sinal de capitulação. Ao contrário: o ratificação das fragilidades, em atrevida negação da heroicidade que só existe na letra de forma dos romances, é o sinal maior das forças que arregimentamos. No espectro cósmico que congemina o tempo que se consome e logo se renova. Até que, no enlace do tempo assim penhorado, frua a vontade de eternizar o que em nós deixa interior, e sólida, peugada.

12.11.13

Afilhado da memória com perna curta

In http://moretimeforyou.com/wp-content/uploads/2011/07/Under-The-Table.jpg
Não gostava que lhe chamassem cacique. Ele só praticava generosidade. Espalhando sinecuras pelos afilhados, ou movendo influências para que outras prebendas estacionassem nas “pessoas certas”. Admitia que tinha tecido uma teia de influências. Admitia que os favores de hoje tinham paga futura. Não via nisso mal nenhum. Se assim era em todos os lugares, por aqui e no estrangeiro, por que haveria de ser ele diferente? Pragmático como sempre soubera ser, não se emocionava com enlevos líricos. Os poetas eram os outros. Ele escolheu a causa pública (e, pelo caminho, os negócios), onde não entram estas sensibilidades.
Um dia, por interposta pessoa, chegou pedido para outro apadrinhamento. Quis saber a linhagem do proposto. Estudou o dossier pessoal do candidato, que nos últimos tempos tinha subido a exigência mercê de um punhado de deceções orquestradas por gente que nunca devia ter sido apadrinhada. O proposto parecia insuspeito de credenciais. Agora que os saberes universitários estavam democratizados, era impensável alguém entrar na roda das sinecuras sem o lastro das habilitações mínimas. Chamou o proposto para um almoço. Ficou impressionado. O rapaz nidificava em experiência, ele que acabava de despir os cueiros da universidade. Era bem falante, assertivo, com ideias arrumadas, tinha uma aura encantatória. Eis porque foi logo com recomendação para cargo importante: estava diante do padrinho e nem um laivo de nervosismo transpirava.
O rapaz entrou na roda viva dos cargos. Foi subindo, uma meteórica ascensão. Dos afilhados todos, nos que o cacique mantinha rédea, este era o mais promissor. Depressa entrou no altar das certezas. Quando começou a ser demandado para apadrinhar outras promessas que ambicionavam amesendar com os poderosos, percebeu que essa era a sua emancipação. Como o poder detido em suas mãos era uma fatia grossa, com atuação que não dependia de mais ninguém, começou a ter os tiques dos pequenos sobas. E começou a mover-se nos corredores do poder, disputando o jogo do poder com os peões que lançava a jogo.
Um dia, dois afilhados reclamavam sua uma prebenda qualquer. Um deles vinha com selo do patriarca. O outro apresentava-se com caução do arrivista. O patriarca telefonou para o arrivista. Em tom paternal, aconselhou o arrivista a prescindir do seu afilhado para aquele cargo. O arrivista não se demoveu. Desafiou o velho patriarca a ser ele a desistir da contenda. Este, já com voz iracunda, tentou desfeitear o outrora afilhado (já percebera, pelo tom desafiante, que os laços se tinham adelgaçado). Ainda invocou o dever de lealdade. Ainda foi ao trânsito da memória, reavivando a do arrivista: “se não fosse por mim, tu não tinhas sido ninguém.” Este, fleumático e triunfal, acabou a conversa: “não me trate por tu. Respeite-me pelo que sou agora. Se sou o que sou, foi pelo caminho que fiz. O senhor só me abriu uma porta, uma pequena porta. O resto, fiz eu. Mereço respeito pelas proezas minhas.

No entardecer do dia seguinte, o arrivista entrava, pesaroso e muito comovido, no velório do (outrora seu) padrinho.

11.11.13

“Estou a ficar mais novo”

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Descobri o elixir da juventude”, apregoava às quatro partidas do mundo, aos ouvidos que o queriam ouvir e aos ouvidos indiferentes que, contudo, depois de o ouvirem não resistiam ao acosso da curiosidade. Nem muitos lhe davam crédito. Os que o conheciam – eram muitos – sabiam da prosápia, conheciam o palrador nato, o contador de histórias que enfeitiçava a audiência ao ponto desta já não saber onde estava a linha de fronteira entre a realidade e a fantasia.
Apesar de serem poucas as credenciais de reputação, os ouvidos que esbarravam na frase quimérica desembainhavam os alfinetes da atenção. “Como podia ter encontrado o elixir da juventude?” – era a interrogação que vinha à flor da pele. Se fosse possível adiar o envelhecimento, por que não tomar conhecimento da matéria com mágicas propriedades? Mas antes de se deitarem com ele na audição da convincente historieta, os que desembolsavam uma maquia de confiança fitavam-no de cima a baixo, indagando se estava a caminho de estar mais novo. Não notavam rugas, o olhar era cristalino e cintilante, os dentes brancos ostentavam outra marca de rejuvenescimento, trazia consigo um aspeto físico impecável e fazia ponto de honra em se apresentar apessoado. O puzzle fazia um todo coerente. O apetite pelo elixir da juventude aumentava com o liminar exame externo às suas faculdades. Era quando começavam as interrogações. Queriam saber, os que corrompiam a circular oficial que atestava a sua fraca fama, como aportara ao elixir da juventude. Sem preâmbulos, disparava o segredo:
- Viajei. Viajei muito. Conheci muitos lugares e pessoas muito diferentes. Comunguei culturas. Fui diferente da minha idiossincrasia. Aliás, perdi o rasto à minha idiossincrasia. Não perdi nada, no fim de contas. Ganhei tudo. Amadureci antes do tempo. Com esta madurez, e toda a bagagem cultural que é meu lastro, fiz-me mais novo. Todas as paisagens, em toda a sua acentuada diferença, são a revivescência de mim.
Os que entoavam preces à sedentária forma de viver viraram costas. Os que não se importam com a velhice, mas compareceram na fugaz confiança de que fosse milagroso o elixir da juventude ruidosamente propagandeado, desmobilizaram. Era muito alto o preço pelo retrocesso do interior relógio que compassa o tempo que vem no seu particular relógio. Mais valia deixar o tempo correr o seu tempo natural. Não sobraram muitos convencidos. Um punhado, não mais. Só que a esses havia míngua de recursos para se emprestarem às viagens frequentes, às viagens demoradas. O envelhecimento era irremediável. Ele, todavia, assomava contra a maré. Uns acordavam com a idade quebrada nas rugas do rosto e nos cabelos grisalhos onde outrora não eram pertença. Ele passava pelos dias, diletante, a desanimar os restantes, anunciando “estou a ficar mais novo”.

8.11.13

Compêndio de um reacionário heterodoxo

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Os que muito criticam um certo “pensamento único” denunciam a “captura” do poder político pelo poder económico. Tudo gravita – argumentam – à volta das grandes empresas. A prova está nos custos da austeridade que veio pôr-se, qual garrote, à nossa garganta: os mais pobres e os reformados suportam o fardo maior; as grandes empresas, e sobretudo os bancos, esses imperadores da ganância e da malvadez, passaram incólumes. Noto que os denunciadores do tal “pensamento único” são os autores de um novo pensamento único, totalitário como qualquer pensamento único, que desabrocha na pendência da democracia. Quem com eles não for de braço dado é sumariamente atirado para as catacumbas da anti democracia. E ainda se arvoram campeões da tolerância.
Mas talvez o diagnóstico não condiga com a grelha de leitura dos novos fautores deste pensamento único. O dia era de greve dos transportes e as imagens da televisão, pelos noticiários da manhã, invadiam os olhares com o caos das cidades sequestradas pelos grevistas que não tiraram os autocarros, os comboios, os metros e os cacilheiros das respetivas garagens. Os rostos dos utentes, ansiosos pela chegada de um comboio, fosse a que hora fosse, era um retrato vivo das greves. Quem diz que os capitalistas é que mandam nunca viu o caos das greves, em particular de uma greve dos transportes. Quase tudo fica sitiado. As pessoas que precisam de transportes públicos para irem trabalhar, ou não vão ou chegam atrasadas (ou acordam de véspera para não chegarem com atraso).
Os sindicatos é que mandam nisto tudo. É um poder espúrio, destruidor. Conseguem que a população dos transportes públicos fique esbulhada. Ato contínuo, desembaraçam-se das responsabilidades. Os utentes não se devem insurgir contra os grevistas. Se o governo lhes fizesse a vontade, não havia greves. Os utentes impedidos de usar os transportes públicos devem atirar a fúria para cima do governo. Só faltava os governos cederem à chantagem dos sindicatos para estes transformarem um poder destrutivo em poder construtivo.
(Uma Avoila qualquer, sinistramente proclamou a seguinte lição: quando os trabalhadores dos transportes públicos fazem greve, acautelam os seus interesses e também os dos utentes. Não sei se posso entender esta lição como um convite aos utentes impedidos de frequentarem transportes públicos: não vão trabalhar, fiquem a descansar. Um programa de intenções, a dita Avoila.)
Pelos olhos continuavam a passar as imagens caóticas da greve. Ocorreu discernir o seguinte: não são os endinheirados, nem a classe média que pode usar transporte próprio, os mais afetados pela paralisação dos transportes públicos. São os remediados que usam os transportes públicos. E ocorreu-me, pois, intuir que estes são os visados pelas greves dos transportes públicos. Desenganei-me. Se algum jornalista com dois neurónios ligados perguntasse às Avoilas por aí se não se incomodam por a greve apoquentar a sua (potencial) base eleitoral de apoio, logo endossariam as responsabilidades da greve ao governo do momento que não quis fazer a vontade dos sindicatos. É uma política de terra queimada.

Aos académicos que conjuram contra o capitalismo, e ao-outrora-ministro-de-Cavaco-que-agora-lidera-o-Comité Económico e Social que descobriu que o poder político foi “capturado” pelo poder económico: talvez fosse tempo de admitirem que os sindicatos é que mandam nisto tudo.

7.11.13

Política em modo folclórico

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Agora é de vez – e não apenas em sonhos, ou quando julgamos que a vontade é tão insubmissa que consegue dobrar o braço à realidade: uma data é quando um homem quiser. Sobretudo se for mandante e decretar, com a solenidade dos decretos, que uma data não é quando aparece no calendário, mas quando apetece ao mandante.
Foi na Venezuela, agora comandada pelo delfim do defunto ditador populista. Chama-se Maduro, confirmando-se que não esté verde para a função. Há dias, embebido de uma epifania, Maduro mandou rasgar os calendários, que ele tinha decidido que o natal se comemorava no primeiro de novembro. Eu acho bem. Este relativismo do tempo merece todos os encómios. Torcer o tempo aproveita a quem com ele mal se amanha – dirão os madraços costumeiros. Mas não é que a voz popular (que tanto – dizem – ordena na imensa democracia que existe na Venezuela) que manda sentenciar que natal é quando um homem quiser? Maduro, o grande ensinador da democracia, porta-voz do povo, corporizou a voz popular e arrepiou caminho através das trevas do calendário. As gentes desesperavam pelo natal. Faça-se natal fora do tempo, ou determine-se que o tempo do natal é quando aprouver ao grande líder em simples testemunho da vontade popular.
As convenções são para os conservadores que não se desprendem das baias do bafio. Às convenções pertencem os calendários. Quem quer uma medida exata do tempo se não aqueles que não se importam de viver aprisionados pela tirania das convenções vertidas em calendários? Louvemos, pois, o grande líder da Venezuela, que reinventou o tempo e fez o favor de nos desfazermos dos calendários que dantes eram a caução do tempo apoderado pelas convenções maniqueístas. Ainda ninguém o disse, mas depreende-se do decreto presidencial de Maduro: o calendário é uma punição do capitalismo.
Da mesma igualha das efemérides itinerantes, só uma virgindade que se vende. Não uma, mas duas vezes. Quem disse que a virgindade se perde de vez quando dela alguém de despoja, deve ser acusado de inqualificável abjeção que ultraja o relativismo das coisas. A virgindade, tal como as datas, só depende da vontade de quem as ostenta. A verticalidade obriga-nos a esquadrinhar muito além dos contrafortes do que julgamos ser a realidade. Porque a realidade está, algures, numa dimensão vertical.
Eu, por exemplo, decreto, em jura solene, que estou na virescência dos meus vinte e quatro anos.

6.11.13

Don’t give up

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Enfraquecia-se-te o olhar porque querias estrelas no firmamento e tudo o que encontravas eram cinzas de um nevoeiro baço. Entristecias-te porque não alcançavam os olhos sedentos qualquer nau na embocadura do cais. Emudecias-te diante da indigência alheia. Nos interstícios do júbilo, havia um encantamento quebrado como se em ti povoasse o pior de ti que um espelho pode refratar.
Não era, esse correr temporário, tempo vão. Servia para resgatar o pensamento das intempéries por onde se tresmalhara. Essa a sua maior serventia: arrimar ao aconchego no regaço das planícies douradas, despojadas das consumições caladas. A rosa dos ventos removida debaixo da poeira era o zimbório de onde ecoavam as estrofes dos poemas maiores, dos poemas que mereciam lugar no panteão onde se aloja o património da humanidade. A rosa dos ventos, lugar onde a calibragem interior se consumava, andara perdida enquanto a tempestade foragida espalhava o caos. Nem quando tudo parecia desnorte, ou quando a maré tomou conta das ruas limítrofes delas fazendo mar, foi prostrado pela capitulação. Ali não havia lugar a capitulação alguma. Por mais doído estivesse o peito de tanto vento enfurecido nele se esbarrar, por mais consumido pelo mar encapelado que se entranhava na ossatura.
Às vezes interrogava se as ruínas momentâneas não eram a ativação natural de uma compensação. As coisas desfazem-se num ápice quando demoraram tanto tempo a serem erguidas. Não contam as derrocadas, as que são imprevistas e as que resultam de uma autopoiética decantação. A Fénix também voltou a viver quando estava entregue às cinzas que pareciam tumulares. Quando o hoje é uma projeção de um porvir que parecia inatingível, já não interessam as dores que o foram no tempo pretérito. As divindades da lucidez interior deixaram a cosmética iludir as cicatrizes. E as luzes das candeias estão viradas a sul, de onde sopra o vento atual, o vento reparador.
Na pirâmide empoeirada já só sobram os proveitos do tempo versado. Sabiamente, enquanto porfiava pela não capitulação, a chave da pirâmide foi devorada pelas ondas enraivecidas que visitavam o convés da cidade.

5.11.13

Segundo fôlego

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Por dentro de um pesadelo: que estava por dentro de água. Um mar qualquer, para onde o corpo atado tinha sido atirado depois do julgamento e condenação sumária. O corpo contorcia-se à medida que as bainhas se retorciam, descendo na vertical à procura da fundura a que os olhos aterrorizados não conseguiam ver fim. Lutava contra os açaimes que embargavam os movimentos. Valia-lhe o treino de apneia que fora feito algures no passado – já nem se lembrava a que propósito.
Conseguiu inclinar os pés no sentido contrário ao da verticalidade que o afundava, travando a velocidade do mergulho. Soltou um braço, o esquerdo, o menos destro. Que, perante a apoplexia anunciada, cuidou de ser ainda mais destro do que o braço mais capaz que permanecia aprisionado. Esbracejando o mais que podia, procurando os nós que eram a sua atadura a meio caminho de ser fatal, o braço sem peias descobriu uma fenda na camisa-de-forças. Rasgou-a, já a profundidade era tanta que mal conseguia espreitar o céu claro onde julgava ser o teto da água. Calculou o tempo em apneia. À míngua de poder estimar a profundidade a que já fora, não sabia se tinha pulmões que chegassem para romper à superfície.
Estava a ser precipitado na andadura. Primeiro, que tratasse de libertar os freios que atavam o corpo. Já não faltava muito e os pés vigorosamente inclinados para cima continuavam a travar a descida. A água já estava gelada – e sabia que a profundidade podia ser excessiva para fugir da sepultura que os verdugos tinham arranjado. A capacidade para não respirar começava a extinguir-se. Conseguiu, enfim, alcançar a liberdade do corpo. O que se seguia era a perícia de nadador. Tinha de convocar a forma perdida, a forma que houvera quando na juventude fora nadador exímio. Podia ser que a emergência tratasse de recuperar a forma perdida. Não sabia se era a perda de lucidez, por causa do muito tempo à míngua de oxigénio, mas parecia um torpedo a furar o mar até à superfície. Já discernia a claridade a espreitar no teto da água e a respiração capitulou. Pareceu ver uma mão feminina, terna e suave, a meter-se dentro de água, como se fosse uma boia salva-vidas. Era uma sereia que escapara à vigilância dos algozes que queriam certificado da sua morte. A sereia trouxe-o à superfície, nas costas dos piratas malditos.
Acordou do pesadelo. Pois não há sereias, nem ele sabia ter cometido crimes que merecessem julgamento sumário e punição tão severa. Acordou imerso num sobressalto. A apneia parecia ter acontecido. Aquela alvorada era como se fosse um segundo fôlego. Sem, contudo, ter notado a perda do primeiro fôlego.

4.11.13

O dia em que o sol se levantou a poente

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O dia era grave. Os deputados estavam circunspetos. O orçamento de Estado para o ano que vem ia a votos. A batalha política – melhor, os truques de retórica – estava a rubro. A nação dependia da aprovação do orçamento. Como era costume, os do governo viravam o orçamento do avesso e não encontravam o menor defeito. Passando para o lado das oposições, é como se nunca pudesse ter sido concebido orçamento tão mau.
Vieram os debates no hemiciclo. Aos observadores já nem importava a fraca qualidade da discussão, o tom desbragado, as exaltações pelo que quer que fosse, a linguagem de caserna, os atropelos à gramática e à sintaxe. O parlamento é a imagem de quem o elegeu. Os observadores, sabendo que o orçamento era indispensável para a reputação externa da nação, queriam que o orçamento tivesse a chancela de uma retumbante maioria do parlamento. Alguns que manobravam nos subterrâneos do poder, e que tinham uma copiosa agenda de contactos, andaram de gabinete em gabinete a tentar convencer os deputados do maior partido da oposição a caucionarem o orçamento de Estado. Os partidos do governo fizeram pungente apelo de concórdia, em nome da pátria benquista e do sentido institucional. Os discursos repetiam-se. Os reptos para a concordância, também. E as recusas a pés juntos, que aquele não era um orçamento que merecesse um pingo de confiança.
Num volte-face inesperado, todos os partidos da oposição proclamaram o voto favorável ao orçamento. Os deputados da coligação e os membros do governo sentados de frente para o hemiciclo estavam perplexos. Uns atónitos, outros lívidos, outros ainda telefonando sabe-se lá para quem perguntando se o que tinham ouvido era o que tinham ouvido. Depois de tanta faca afiada, de tanto ultraje que não quadrava com o discurso parlamentar, de tanta irredutibilidade aos apelos de concórdia, todos os partidos da oposição, moderados e radicais, selaram o compromisso que lhes fora pedido. Um dos deputados anunciou a cedência. E exortou os da maioria: “agora façam o que vos compete”.
Os deputados da maioria não tardaram a desempenhar o seu papel. O papel de oposição à oposição. Podia lá o orçamento deles merecer o beneplácito dos partidos da oposição?! Não demoraram a retirar o apoio ao orçamento do governo de que eram muleta. O próprio governo renegou o seu orçamento. Foi a vez de os deputados das oposições ficarem sem pingo de sangue. As pateadas sobrepunham-se a qualquer tentativa de oratória. As pateadas vinham de todos os quadrantes. Os da oposição protestavam contra a emboscada dos deputados apoiantes do governo. Acusavam-nos de trair a harmonia que tanto pediram. E de traírem a nação. Um deputado da maioria ripostava: “nós fomos feitos para discordar. Esse é o nosso código genético.” Ao que um deputado da oposição moderada indagou “porque nos pediram para selar este orçamento?”, tendo a reposta vindo célere: “não contávamos que vocês aceitassem.

No dia seguinte, quem madrugou e saiu à rua sentiu um frio a percorrer a espinha dorsal. Uns porque temiam que o desacordo do orçamento tivesse consequências funestas para o devir da nação. Outros porque estavam ainda emocionados pela disposição dos deputados para irem aos antípodas do que andaram a ajuramentar.