24.12.13

Conto de natal (versão 2013)

In http://gastronomiaporesporte.files.wordpress.com/2013/01/img_8301.jpg
A excitação da véspera de natal levou o sono cedo de mais. Já não era por causa da visita do pai natal, que não tinha idade para acreditar em contos de fadas, e a encenação que os mais velhos repetiam à medida que os natais iam em cadência era isso mesmo, uma encenação. Limitava-se a fazer de conta que ficava inebriado com a figura enchumaçada vestida numa disforme fatiota vermelha, as fartas barbas de algodão caindo em cima do peito, a custo empurrando o saco de serapilheira cheio de prendas, enquanto na varanda troavam os tachos em sonora algazarra.
Podia não parecer, mas tinha crescido. Às vezes parecia que os mais velhos insistiam em não o deixar crescer, tal a teimosia na encenação do vetusto pai natal. No ano anterior tivera de fazer de conta que ainda acreditava no pai natal – e eles, na escola, esboçavam estrofes de músicas rap entoando as coisas mais feias acerca do pai natal. Neste ano, percebeu que alguns dos familiares continuavam mergulhados num imaginário infantil natalício, pois eles é que exultavam com a chegada da anafada figura que preside ao natal. Não é cómodo ser testemunha deste pueril encantamento dos mais velhos.
A excitação da véspera de natal, e que tinha furtado o sono antes do tempo, era por causa da demorada estadia na cozinha, ajudando nos preparativos gastronómicos. No ano anterior estreara-se como ajudante. Ia chegando os ingredientes, um tio ensinou-o a separar gemas de claras, a avó incumbiu-o de pesar os ingredientes na balança antiga que ainda precisava dos pesos de chumbo para acertar o fiel e dar o peso certo. Este ano queria meter as mãos na massa. Literalmente. Lembrava-se como uma das tias meteu as mãos quase até aos cotovelos na massa dos sonhos. Queria ser ele o intérprete dos sonhos. Podia ser que, ao mexer na massa dos sonhos, os sonhos que chegavam ao sono descessem da dimensão onírica e se fizessem coisas tangíveis.
Mas tinha um medo: e se as mãos na massa, ordenhando os ingredientes para a congeminação dos sonhos, fossem tutoras dos sonhos bons e dos maus também? Tinha de perguntar à tia. Assim como assim, em continuando a ser tratado como uma criança tardia, podiam descontar a ingenuidade da pergunta.

1 comentário:

Museu Nacional de Soares dos Reis disse...

Um grão de arroz doce, sempre atento a tudo o que se passava em seu redor, murmurou:
“Ouvi dizer que o medo leva os sonhos sem pedir licença: os bons, os maus, até os doces… Não será preferível meter as mãos na massa? ”
O Rei da Festa, com coroa de poucos amigos, respondeu no mesmo tom:
“Não sejas intrometido senão, este ano, abrigas tu a fava.”