31.5.13

Colarinhos de aba larga (república unida dos cabotinos)


In http://cdn.deguisetoi.fr/images/rep_articles/gra/pa/pantalon-noir-pattes-d-elephant-disco-homme.jpg
Era como se só saíssem duques do baralho de cartas. Não se queixava.  Nutria ternura pelos cabotinos.
Não se importava que lhe atirassem à cara a sobranceria em que se montava. Na lente dos outros que, da mesma igualha, eram dados a tão aguçado baraço, ninguém escapava aos impropérios. Deus não existia, diziam, porque em vez de distribuir inteligência deixou aos habitantes do mundo uma simplória frivolidade. Ele – sabia-o, e fazia gala em demoradas auto exibições diante do espelho – fazia parte do curto escol de iluminados. Em contramão com seus pares, ia ao arrebatamento com a bestialidade dos outros. E não era curiosidade intelectual, nem mister da ciência que praticava. Era genuína adoração pelos cabotinos. Frequentava os mesmos lugares. Misturava-se com eles. Tinha a sedução dos atores que conseguem encenar-se em diferentes personagens. Ninguém dava conta, na confraria dos apedeutas, da sua pertença às elites da erudição.
Era segredo bem guardado. Nem sequer os mais íntimos, ou até antigas namoradas que foram arquivistas de memórias, sabiam. Não era por receio que o internassem por demência. Menos ainda por temer que alguns dos mais próximos praticassem a chacota que o diminuísse – chegava para todos e por junto, disso estava seguro. Como genuína era a predileção por cabotinos, espontânea era a necessidade de resguardar para o mais profundo do íntimo a faceta que mais ninguém podia conhecer.
Habitava realidades paralelas. A que vinha das capacidades cognitivas (era mais um ganha pão, uma catarse intelectual que aliviava a criatividade acumulada). E a da comunhão popular, nas suas raízes mais profundas, um lado da personalidade que não conseguia (nem queria) domesticar. A certa altura, este lado da personalidade triunfou sobre os escombros da censura que a arrogância cultural queria impor. Habituou-se, o lado da arrogância cultural, a cingir-se ao seu insignificante território.
Uma dia, por acidente, um conhecido de um conhecido apanhou-o em êxtase num concerto de David Fonseca. Até vinha de colarinhos de aba larga, calça à boca de sino, coreografando-se desajeitadamente enquanto reproduzia, com saber, a prosa do cantor. Chegou ao conhecimento dos mais próximos. Um, ansioso por lhe decifrar um passo em falso, confrontou-o: “com que então, num concerto de música pimba?!” Não deu o flanco. Altivo, fez falar a parte de si imersa na sobranceria cultural: “podíamos discutir longamente sobre os méritos do artista. Como não te reconheço pergaminhos para seres interlocutor à altura, a conversa fica por aqui. Não estás à espera de justificações, pois não?
No dia seguinte, foi para o trabalho com uma camisa de farto colarinho arredondado nas extremidades, profusas bolinhas amarelas estampadas em tecido azul claro, calças vermelhas em tecido acetinado. Nos auscultadores, com não indiscreta fuga de som para os das imediações reconhecerem, Dino Meira.

30.5.13

O velho que passa o tempo no banco do jardim


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Aprendeu a solidão. Aprendeu a olhar o sol como bússola do tempo sobrante. Só lhe custava aguentar a invernia, e não era pelo tempo desagradável que se punha; era por os elementos não se conjugarem em sua vontade para que ele pudesse ir em deambulação até ao banco do jardim onde gastava o tempo diurno.
Aprendeu a viver com as saudades da consorte que partira. Aprendeu a conviver com a indiferença dos filhos e dos netos – não fora o natal, no repetido e frio gesto de caridade na rotação entre os filhos, e poucas vezes viria à lembrança que tinha família. Aprendeu que não serve para nada acordar resmungão e destilar ódios pelo resto do dia. Ainda experimentou a triste ladainha dos reformados que se cansam de ter um teto em cima da cabeça e de acordar ao lado da consorte eterna, mas as tascas não eram seu habitat. Aprendeu a olhar no espelho e a contar as rugas pronunciadas, o olhar cansado pela insónia que furtava as mínimas horas de sono, a barba desarranjada e o cabelo sem alinhamento com que saía de casa mal a manhã metia o dente no relógio. Já os filhos o tinham advertido que tinha desatendido a figura.
O que não aprendeu foi a passar o tempo metido dentro de casa. Podiam ser as evocações da consorte, por mais que a televisão fosse companhia, por mais que se abastecesse de literatura diversa, entre jornais, revistas e livros da preferência. Pensou mudar de casa. Que talvez os fantasmas que se apoderavam do sono não entrassem com ele na casa nova que viesse a habitar. Tirou daí a ideia. Julgava, sem ter argumentos convincentes para o explicar, que se mudasse de casa traía as memórias da consorte que se habituara a guardar.
O luto demorado – é genético da geração – convocava novos rituais. Sair de casa e só voltar quando a noite se anunciasse. Cozinhar o jantar. Deixar a cama por fazer. Limpar os vidros ao ritmo das quintas-feiras. Não regressar aos álbuns de família que enxameavam as estantes do escritório. Não abrir os armários onde deviam jazer os pertences da consorte, não fosse a teimosia dos filhos em dá-los para caridade.
O tempo diurno passava por um fio num banco do jardim. Lia muito. Jornais de fio a pavio, um ou outro livro empilhado na mesinha de cabeceira (nunca repetia os livros em dias consecutivos). Observava quem passava. Num caderninho de capa lilás, anotava comportamentos. Tecia juízos sobre os namorados amuados, os amantes em encontros furtivos combinando outros encontros furtivos, as crianças vertendo a genuína felicidade dos inocentes, os ciclistas ora empenhados, ora diletantes. À hora do almoço, enganava a fome com uma bucha num bar perto do jardim. Voltava a ler, mesmo que o desentolhimento das pernas o levasse a uma lenta caminhada pelas ruelas do jardim.
E assim tomava conta do tempo, num sincero adiamento do dilúvio que seria seu destino sem que fosse lauta a demora. De tão escasso, esse tempo era ouro.

29.5.13

A idade que nunca temos


In http://boasnoticias.sapo.pt/img/elixir.jpg
Ainda o corpete do tempo.
Ganha espessura a névoa que nasceu delgada. E, contudo, por entre as finas gotas que compõem a névoa levanta-se um auspicioso esplendor. A claridade esbarra, furiosa, contra o rosto que se meteu por dentro da névoa. Os relógios poltrões, os que ditam o avanço dos ponteiros na cadência convencionada, os segundos compondo-se à razão de sessenta num minuto, são aldrabões que furtam o tempo leniente. E nós, o rosto emprestando-se à sofreguidão da névoa, olhamos para todos os quadrantes do tempo, acima e abaixo, à direita e à esquerda. E julgámos, em prematuro epílogo, que fomos penhores de todos os tempos sabidos.
Agora que a claridade descontamina o olhar, e que uma constelação de paráfrases ideais voga no espaço do pensamento, percebemos que fomos penhorados ao tempo em todas as suas dimensões. Andámos em contramão com o tempo de cada vez que quisemos a idade que nesse tempo não era nossa. São dores que sobram no distanciamento dos períodos que foram tiranetes outrora? Esses prantos são um destempero. A idade que nunca tivemos não é a idade que temos. É uma bênção que embala ilusões dos lugares verticais e do tempo vertical em que ousámos andar. Talvez as uvas maduras pendidas sobre os cachos protetores sejam o mote cobiçado. A lucidez que despontou acusa as idades que quisemos ter a destempo.
O tempo não pode ser um corpete. É um vistoso campo de flores que serve de tradução à hipérbole da existência. Não contam os pretéritos que resguardam servis evocações sem utilidade. Nem contam os pés metidos em fados que ainda não foram visitação, o tempo ainda ausente gritando a impossibilidade vertida num sonho pueril que é um quarto vazio. Nas idades que nunca tivemos fomos outra dimensão de um eu que nunca fomos nós. Alquebrámos as dívidas com o presente desgastado em inalações do tempo inventado nas idades que nunca tivemos.
Agora, a idade é esta. Agora, os pontos cintilantes que preenchem a escuridão do céu são a cartografia irrecusável. Não é fado, nem sequer um desfado, que a água derramada no tempo presente quer compor. É apenas a idade que nos é indultada.

28.5.13

Inteiro


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O corpo inteiro. A alma inteira. Abraçada ao corpo. Os dois, enfim, em uníssono. Deixaram os medos de o ser. As facas longas são plumas que expurgam os vestígios sem serventia. Inteiras, as alvoradas delapidadas por tanta gente, crescem com o corpo que abandona o torpor da noite. Os olhos detêm-se em palavras magas, debruadas pelo ouro de um poema.
As mãos, as tangíveis mãos, vão à água fria beber sua força. O corpo sem dores. A alma lavada. As facas que deixaram de ser punhais ameaçadores. As flores vicejando nas árvores podiam ser o simulacro de outro tempo, mas são as fores no seu tempo – do seu tempo. Ávidas pela respiração do ar reembolsado pelas manhãs soalheiras, como ávidos são os olhos baços que se defenestram em viagens de solidão. Pois o corpo inteiro e a alma em demanda da inteira condição precisam da sua solidão. Para irem ao fundo de si e encontrarem os sedimentos que trazem ao de cima, fertilizando o chão cansado à espera de ser espertado.
E o corpo inteiro deixa o tempo madraço, cavalga nos contrafortes da montanha audível de onde as aves trazem em seu dorso os fósforos que vão atear o tempo recomposto. O corpo inteiro a caminho da alma que está quase a deixar de ser um manto de estilhaços. Os fragmentos não têm serventia, são meras ruínas. Para ser inteira, a alma repensa-se. Quer purificação – e sabe que a purificação não vem em manuais, desfolha-se em amarelecidas páginas escondidas num recanto escuro do ser. A alma é inteira quando se soergue desde as ruínas que foram sua alcateia e consegue amparar-se sem esteios. Os olhos levantam-se e conseguem ver a luz clara que provém da alvorada. Estão preparados para toda a luz que vier, para as trevas que tiranetes quiserem açambarcar como armadilha à inteiriça condição. Já não importa o resto. Pois o resto perdeu o valor ao saber que o corpo se irmanou na alma, os dois inteiros como as memórias não têm reminiscência. Agora as rosas podem ser das cores que lhes aprouver. Os pássaros podem entoar os seus cânticos que não deixam de ser sibilinos mas doces ao ouvido. O porvir é apenas uma medida esquecida do tempo. E as mãos regressam, as vezes que forem precisas, à água fria na sua insaciável busca por nutriente.
Agora, corpo e alma levitam na sua inteireza, apurando as arestas que deixam de ser dentes afiados a rasurar as curvaturas do corpo e da alma. Inteiro, o corpo é um diamante em bruto que não precisa de lapidação. A alma, deixada à sua inteireza, é uma janela aberta de onde todo o tempo e todo o espaço se abraçam aos olhos.

27.5.13

Das manobras circenses


In http://www.mascarilha.pt/imagens/produtos/55523-gde.jpg
Um escritor chamou “palhaço” ao presidente da república. Sua excelência achou-se ofendido na honra e mandou perguntar à justiça se a injúria não é crime. A seguir dois coros trataram de opinar. Um coro achou a ofensa sem desculpa. O outro desvalorizou a ofensa. Os tenores do primeiro grupo costumam frequentar a trincheira de sua excelência, o ofendido. Os barítonos do outro coro fazem gala em dizer “mata” quando sua excelência diz “esfola”.
Posso estar enganado no diagnóstico (e podia fundar aqui um terceiro coro, mas falta-me veia para o canto), mas não entendo a serventia do caso. Aliás, este devia ser um “não caso”, se o presidente da república não desse importância a um escritor de terceira categoria que, todavia, é popular nos escaparates das vendas de literatura (ele há gostos para tudo e, tal como uns moicanos chamam música a géneros que levantam a dúvida no plano da estética, há quem considere literatura a qualquer coisa escrita em letra de forma). Depois os comentadores dividiram-se na habitual dicotomia: uns amparando sua excelência, que não se faz tamanha injúria; outros cuidado de o vituperar no máximo que puderem, pois passou o prazo de validade.
Se houvesse terceiro coro, dir-se-ia: e onde fica a liberdade de expressão? Não posso chamar “palhaço” ao presidente da república sem que isso seja crime? Mas já posso usar a mesma alcunha para outros políticos sem que seja crime? E, já agora, o que seria dos tribunais se os árbitros dos mais variados desportos mandassem as autoridades policiais identificar cada espetador que atentasse contra a sua honra e a da respetiva progenitora? Temos de ler as palavras, mesmo quando coalham o injurioso, na sua literalidade?
Desenganem-se os que julgam que, afinal, sou um barítono do segundo coro. Pois a esses barítonos também dirijo uma pergunta lapidar: e se alguém chamar “vesgo” ao professor Boaventura, ou “preto” a António Costa, ou “tosco” ao camarada Jerónimo, ou “bardo” ao poeta Alegre, ou “totó” ao anterior presidente Sampaio – e por aí fora –, conseguem os seus seguidores calar a indignação e deixar a liberdade de expressão falar mais alto?
Temo – e aqui deito-me a adivinhar – que os barítonos seriam tenores se uma daquelas personalidades fosse apoucada com aqueles (ou outros) impropérios. Ai, os “double standards”, que cilada.

24.5.13

O suspeito do costume


In http://franciscofalconi.files.wordpress.com/2008/07/algemas.jpg
Era pacato. Fleumático de mais, não questionava a autoridade quando os agentes respetivos lhe metiam a mão e o traziam para a esquadra. Ele também não fazia perguntas – como não fez da primeira vez que o seu ar desajeitado o pôs a jeito da função. E qual era a função? Perfilar junto a outros anónimos numa sala de espera na esquadra, com um número a adejar sobre a sua cabeça. Olhando de frente, e depois de cada um dos lados, para um espelho que era do tamanho da parede diante dos olhos.
Podia ser distraído, podia ser calado e tímido, mas não era destituído de entendimento. Quando lá foi parar pela primeira vez, soube ao que ia: cobaia involuntária ao serviço da justiça, no labor policial da identificação de um possível meliante. Depois os serviços foram sendo solicitados a uma cadência que podia impressionar outro cidadão qualquer, outro que se incomodasse quando a sua liberdade fosse incomodada em maus modos (que são os modos habituais dos polícias mais velhos) por sequer suspeita nenhuma. O rapaz era indulgente. Os pais adestraram-na para a servidão da autoridade. Diziam-lhe: “curva-te perante a autoridade para nunca teres aborrecimentos. Quando puderes, colabora com a justiça. Não há coisa pior que a injustiça.” E o rapaz, com a paciência de um bovino, lá ia na companhia dos agentes que já o conheciam de ginjeira. Um dia percebeu por que era tão requisitado. Um dos agentes segredou ao agente novato nas funções: “estás a ver? Este que fomos buscar é o tal tipo aberrante de que te falei. Fica sempre bem no conjunto de mal encarados que se misturam com o suspeito na fila da identificação.
Assim como assim, já estava habituado às desconfianças da autoridade. Um amigo que o acompanhava na boémia, mais letrado e com a rebeldia fervente, importunava-se em sua vez quando, em ruas desertas ou no meio do bulício da noite, um agente à paisana exigia identificação. Uma vez foram os dois para a esquadra. Ele, contudo, foi por solidariedade com o amigo que, com as ideias turvadas pela cerveja a rodos, bolçou em cima do agente à paisana: “isto é fascismo social! Pedem-lhe a identificação porque ele usa tranças, piercings e uns andrajos. Está mal!
O rapaz tinha um cadastro criminal imaculado.