30.9.13

Seis anos e um dia


In http://2.bp.blogspot.com/-msv0Cuwk0Gs/Ttbz1rfr8WI/AAAAAAAAC5k/ccfbzuq_Vxw/s400/agenda.jpg

Seis anos. Valiam como seis meses. Era apenas uma recordação. Como as há reconfortantes e aquelas que infligem cicatrizes. Esta era apenas uma recordação. Às vezes parecia-lhe ambivalente. Outras apenas uma inutilidade, como se um acaso tivesse passado pelo calendário e teimasse em reverberar as feridas que abrira então.

Fora ontem, os seis anos sobre uma efeméride que não tinha importância alguma. Mas que teimava em ser efeméride. Podia ter sido um acidente que o deitara numa cama de hospital em prolongada convalescença. Mas não era. Podia ser um nascimento que se emoldurara a ouro pela relevância do nascituro. Mas também não era. Podia ser uma proeza profissional. O cadastro não caucionava tanta folga. Podia ser o adeus dos adeus de um familiar. Não havia pouco tempo que tais sucedidos tivessem desalavancado as lágrimas de tristeza. Já não sabia ao que vinha a efeméride que sublinhava a vermelho vivo o dia na agenda.

Foi aos arquivos. Porfiou e encontrou a agenda de há seis anos. Desfolhou as páginas até ao vigésimo nono dia de setembro que fora há seis anos. A página estava virgem. Nenhuma anotação. Meticuloso como era, não podia acreditar que o olvido da data tingisse a página de branco. Encontrou a agenda que viera no ano seguinte. Já lá constava "aniversário da efeméride". Não resultou grande ajuda. O dia em que transcorria o sexto aniversário da efeméride anónima passou em sobressalto. Perguntava-se, desafiando a memória, o que teria havido nesse enigmático dia. Não achou respostas convincentes.

Na alvorada seguinte lembrou-se da importância da data. Era o dia seguinte a seguir ao sexto aniversário de coisa alguma. O que importava não era o sexto aniversário do que não sabia ser motivo para o ser. O que importava era o dia que vinha a seguir. E o outro que se seguisse. E o terceiro que vindicava o sexto aniversário de coisa alguma. E por aí fora. Esse era o tempo com serventia.

27.9.13

Quando há violência, há alguém que estava a pedi-las


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Há gente que pensa com os pés. Como aqueles que procuram justificar o injustificável – se estivermos de acordo que a violência, qualquer violência, escorrega por entre o lodo do injustificável. (Eu sei: estou enganado, enfeitiçado por um naco de lirismo, e que as coisas na sua insuportável forma de ser são a negação das líricas formas de as ver.)
Ouço e peço meças à atenção para escutar sem interferências de pensamentos outros: dois idosos reclamam inocência para um burgesso que agrediu outro porque este teve o despautério de manifestar a sua liberdade de expressão. Os dois convergem no diagnóstico: a liberdade de expressão do agredido foi à guisa de provocação (para o agressor). Como se repõe a (soez modalidade de) justiça? O provocado, em sentindo-se provocado, atropela a liberdade de expressão daquele que julga seu provocador e atira-lhe dois covardes sopapos no pescoço (covardes, pois foram largados pelas costas). Lição que daqui se retira: antes de exercer o mais básico direito à liberdade de expressão, há que adivinhar se alguém vai acusar a posição de provocado. É que os provocados inflamam-se de fúria e podem resolver à maneira do homem das cavernas uma contenda que nem sequer devia ser contenda. A liberdade de expressão combate-se com a contrária liberdade de expressão.
Estes valentes que empestam as redondezas com a sua boçalidade violenta são espécimes perigosos. Acham que intimidam quem tem a ousadia de se situar nos antípodas das posições que ocupam (pois que divergir é uma ousadia, e das intoleráveis, ao que se faz constar). Intimidam, primeiro, como tentativa de dissuasão dos que vierem de lados diferentes. Se a intimidação não for bastante, as palavras cavalgam para a ação violenta. Como gostam de dizer, ufanos, sem talvez perceberem o primarismo a que se abraçam, “tudo se resolve com uns sopapos”. Nem que, à falta de física coragem para serem os próprios a distribuir os prometidos sopapos, encarreguem uns mercenários da violência a soldo de uns quantos cobres. Ah, tanta a coragem!
Folgo em saber que há quem assim pense: que divergências e provocações (ou que assim o sejam entendidas) podem ser resolvidas à bofetada, ao pontapé, ou mesmo ao tiro quando a provocação seja de lesa majestade. Sejamos todos tutores deste ignóbil comportamento. E assim sucessivamente, até sermos todos um bando de selvagens que pensa com os pés e atua com as patas.

26.9.13

Outono que te quero


In http://download.ultradownloads.com.br/wallpaper/163515_Papel-de-Parede-A-Chuva-Esta-Chegando_1600x1200.jpg
Encenam-se as primeiras chuvas. Dizem que o outono se faz anunciar. Estaria tudo certo, não fosse a tepidez a caldear as chuvas ora intermitentes, ora contínuas mas de fina espessura. Dizem que é o outono a espreitar no alfobre ainda tisnado pelo verão. Os mais desconfiados, fartos da estação que destila sol e calor ao fim de quatro meses que mais parecem seis, lembram que estas chuvas também são visita ocasional do verão.
Um lampejo de otimismo: que seja o outono. Abram-se as janelas ao outono, que o verão, teimoso e retardatário no seu envelhecimento, se demora. A carência é do outono. Pois o outono arquiva a preguiça estival. Os meses de curtas noites são, paradoxalmente, aqueles em que ao corpo menos apetece entregar-se aos labores. O calor torra os miolos, embacia o pensamento, estorva a ação. O verão é um longo hiato em que mesmo que não haja entrega ao ludismo, a preguiça açambarca o corpo e o pensamento. É um sequestro. Intimida os movimentos só de antecipar a liquefação do corpo transido pelo suor que escorre por ele abaixo.
O outono é um renascimento. Os serviçais do verão apressam-se a contrapor: o outono não é renascimento se a sua identidade é o acobreado das folhas caducas em seu definhamento até que, varridas pelos primeiros ventos pré-ciclónicos, dispam as árvores que foram suas hospedeiras. Um lugar comum do outono: é a estação da decadência, o adeus ao vistoso verão. Ungindo os corpos com o sabor árido dos elementos – o vento furioso, a chuva célere e soprada pelo vento ameno de sudeste, os primeiros frios matinais quando as janelas hasteadas acusam o orvalho do arrefecimento. Culmina o lugar comum: o cidadão médio despraz o outono.
Prouvera que os gostos não fossem dissemelhantes, e os lugares comuns fariam a vez de leis imperativas. Louvores à subjetividade que traz olhos diferentes a decantarem cores diferentes através do mesmo objeto observado. O verão enfastia, por tanto durar numa medida do tempo que o parece distorcer. E, se por mais não fosse, as estações na confluência desta latitude e longitude são equânimes: o calendário do ano divide-se pelas quatro estações. O equinócio de setembro chama o decesso do verão. O tempo espera-se outonal, em tirocínio do agressivo inverno.
É assim o outono: uma transição todavia suave, uma orquestração de cores singulares com cambiantes que fluem com o tempo em sua redoma passante. Uma viagem plural, não monótona.

25.9.13

A grande árvore mastro


In http://2.bp.blogspot.com/-9SpYhkr4Dsc/T10AZb6o7cI/AAAAAAAALUI/Nj2ZnzF2T1E/s400/Grande_Arvore.jpg
(Por dentro do espelho – ou como se o espelho estivesse virado do avesso)
Inventaram-te papeis. Difíceis de suportar, esses papeis, pela imensa responsabilidade em tuas mãos. Diziam-te esteio. Ou um cais, onde outros haveriam de aportar sempre que houvesse carestia de lucidez. Invocavas o céu azul como metáfora de liberdade, da tua liberdade que não querias esportulada por tamanha empreitada.
Invocavas, em última instância, um egoísmo que dizias, por tua desdita, atroz. Não te criam. Julgavam que era falsa modéstia, que não querias que repousasse em teus ombros empreitada tão vultuosa só porque não aceitavas que em ti farejassem um farol. Diziam que farol não eras, que o nevoeiro embacia os faróis que há, e os tantos que se entregam à noturna desorientação podiam naufragar. Diziam-te árvore, majestosa árvore como as há aquelas seculares que enraízam tronco de largo diâmetro. A condizer, terra de uma fertilidade singular. Mas tu não querias ser sitiado pela bonomia que te entregavam naquilo que julgavas presente envenenado. Tentavas convencê-los que não há bem maior que a autonomia individual. A deles. E a tua.
Congeminaste discursos elaborados sobre estéreis heróis. Se calhar, o mal foi o discurso elaborado: poucos o entenderam. A cada tentativa de escapares ao desiderato que te encomendaram, endeusavam-te mais. Pueris, agradeciam a tua modéstia. Não lhes era dado a entender que não era modéstia; que não querias ser açambarcado pelas suas importunações que tuas não eram, pois as tuas já bastavam. Teimavam na mesma toleima: que eras árvore, e árvore de especiais pergaminhos. A árvore mastro onde se podiam agarrar para se resguardarem de tempestades. A árvore que era mastro onde se aquartelavam, colonizando ramificações como escudo protetor.
Incapaz de dobrar a vontade da gente, cada vez mais numerosa, em demanda de teu cais centrípeto, tomaste resolução drástica: meteste-te em polémica demonstração de privados vícios. A moralidade que campeava trataria do resto. O julgamento público foi cerce. Foi como se uma brigada de lenhadores tivesse seccionado o grosso caudal que se enraizava fundo na terra. Que deixara de ser fértil, agora terra bastarda. E tu, por fim, árvore derrubada. O sossego, que sempre fora a centelha dos sonhos, enfim devolvido.

24.9.13

Veias incandescentes


In http://images.teinteresa.es/tierra/Tungurahua-expulsando-incandescente-Huambalo-Ecuador_TINIMA20120822_0068_3.jpg
As velas que ardem com o sopro dos véus caídos simulam os archotes que avivam as veias. As veias que outrora pernoitaram na indolência, como se as alvoradas fossem esteios das noites que prometiam novas alvoradas sem que no permeio algo acontecesse, eram veias anestesiadas. Subjugadas por um sono letárgico – e o tempo era um adiamento perene, a medida de um devir que não teria lugar nos interstícios da história.
O gigante adormecido despontou numa alvorada igual às demais. Começou por sentir um prurido que fermentava um entendimento diferente das coisas. Era como se os olhos se tivessem renovado por dentro de si, revirados ao beberem do cálice de vinho forte que perfumava, doravante, a existência com um aroma a frutos vermelhos. As veias inchadas eram o sinal da disparidade. Tudo parecia dissemelhante. Já não era apenas o ângulo pelo qual as coisas entravam no olhar. O pensamento virou-se do avesso. E até os gestos mais mecânicos, como respirar ou andar, foram reaprendidos.
Mas eram as veias em sua ardência que mais se faziam notar. Os archotes arfavam por dentro, fazendo latejar as veias que pulsavam à vista desarmada. Um fogo intenso subia desde as entranhas. Agora sentia-se no sopé de um vulcão, pronto para uma erupção esplêndida. O tempo que se seguiu foi intenso. A exiguidade do tempo ditou a carestia do sono, minguado à serventia mínima. Era como se sentisse que já não havia tempo para além do horizonte do amanhã que vinha. As veias incandescentes ditavam o programa do tempo quimérico. As ideias passavam em velocidade estonteante, tanta que não as conseguia domar em folha de papel. Algumas ficaram emolduradas em gravador, onde a voz trémula, incendiada pelas veias efervescentes, bolçava esquemas de pensamento originais e poemas ora sublimes, ora grandiosos. Mercê das veias em ebulição, as forças não tinham míngua.
Alguém lhe dissera que andava estranho, que nem parecia ele que como se dera a conhecer. Alguém, ainda mais à vontade, perguntara se não andara metido em mistelas ilícitas, tanta a energia a transbordar. Não querendo perder tempo com justificações que não julgava devidas, rematava a conversa com um olhar desinteressado. O mesmo olhar raiado fruto dos vestígios dos archotes em consumição por dentro das veias. E depois partia. Partia rumo ao que viesse de vir.
Nunca tirara tanto partido do tempo. Deitava-se para o par de horas de sono pela frente. Convencido que aquele tempo valia por cinco. E não, não queria saber de onde viera o combustível que ardia nas veias.

23.9.13

A fancaria do bairro seleto


In http://4.bp.blogspot.com/-92hIer0IaHQ/TuprWnB5U_I/AAAAAAAAJmw/TWjWavqTg5g/s640/bolsos+vazios.jpg
Faz lembrar uma aristocracia de antigamente, quando a decadência só não assomou, fruto da bancarrota financeira, porque essa aristocracia teimava na pose altiva. As castas renovam-se à mercê do tempo. Ainda que algumas oligarquias tenham sucessão dinástica, e envergar um certo nome de família seja lastro considerável, a modernidade e as ideias – digamos – mais democráticas abriram alas a uns arrivistas que se ofendem se alguém assim os apodar.
Contudo, correm notícias que alguns destes aristocratas, dos que têm velho estalão e dos que são neófitos na abastança, andam aflitos com os apertos da economia. As contrariedades são transversais. A crise é democrática. Só o não é quando alguns aristocratas, afogados em dívidas colossais e sem poderem vender o muito património, mantêm a pose altiva. E não se podem desfazer do património a não ser ao deus-dará, hipótese recusada para não darem o flanco e exporem os pergaminhos arruinados. Continuam a desfilar sobranceria, como sempre foi seu apanágio. Ele há alguns (faz-se constar) que navegam de dívida em dívida, sempre com o pescoço só um pouco soerguido à tona da água, enquanto vão enfeitando o livro vermelho do supervisor bancário.
Nem assim os sinais exteriores de abastança fraquejam. Só que nas mansões já não há manjares opíparos para uma imensa corte. Nem há férias em lugares paradisíacos, com diárias milionárias e um comportamento de quem não olha a gastos. Continuam a fazer-se deslocar em automóveis de gama alta, nem que os leasing deixem de ser pagos e eles se mudem para outro automóvel de alta cilindrada que depressa terá leasing em incumprimento. Os rituais de casta não mudaram. Socializam, como sempre socializaram, num circuito fechado que emite um feixe de sinais faz-de-conta que distinguem a casta. Mantêm a elegância, eles e elas, nem que os adereços passem a ser da mesma fancaria que se vende nas feiras dos ciganos e os cabeleireiros delas sejam de vão de escada.
Insisto: esta crise tem um potencial democrático que passa ao lado dos observadores.