16.1.14

Contraindicações

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(Um vinho com taninos do agrado dos cultores da moralidade – de uma moralidade qualquer, que as há tantas, tantos os gostos por onde elas transitam).
1. Açambarcas toda a riqueza. Um dia acordaste com a pele virada do avesso. Não soubeste trair a ganância que te consumia por dentro, enfartaste toda a avareza que se podia conceber, o que custou um aviltante empobrecimento a muita gente. Numa alvorada, ainda dormias abraçado à ostentação que afivelaste, a horda rebelou-se. Nada puderam fazer os soldados do teu exército privativo. A horda manietou os lenientes, liquidou os mais bravos, saltou as ameias da tua abastada fortaleza, saqueou pelo caminho o que estava à mão, descobriu o canto onde adestravas o sono. Quando deste conta, já não fazias contas aos haveres. Já não eras ser vivente.
2. Açambarcas a adrenalina toda. Em parte, porque te sentes acometido de uma excitação viciante. Em parte, porque és cultor do heroísmo e crês que os docemente endemoninhados da adrenalina figuram no panteão dos modernos heróis. Agrada-te a ideia que os outros de ti fazem: uma bravura tresloucada, mas sem que a batuta se perca dos teus dedos. Os desafios adelgaçam-se a cada nova epifania desvairada. Haveria de vir um dia: as hostilidades seriam finitas. Pegaste num automóvel sob efeito de substâncias ilegais. Os sentidos estavam embaciados, mas julgavas-te penhor de uma bravura ímpar. Afinal os sentidos atraiçoaram-te. Entraste na estrada pelo lado contrário. De frente vinha o camião do lixo. Já não ficaste para contar a contrariedade.
3. Açambarcaste o vinho que havia na adega no rés-do-chão da tua casa. Já não eras o conhecedor que descobria a combustão dos paladares escondida em cada vinho. Filiaras-te na dependência. Bebias os vinhos, dos correntes aos mais raros que na adega repousavam. Não eras exemplo médico, que os ditos propagandeiam um copo virtuoso às refeições. O teu fígado parecia o dos gansos antes da degola que os serve de matéria-prima para o foie gras. Certa noite, as pernas trémulas tropeçaram nos braços e o teu obeso corpo caiu pela escadaria abaixo. Só parou, o disforme corpo, na frontaria onde repousavam os favos vazios que outrora acamaram distintas garrafas de vinho tinto reserva. O vinho sobrante já não seria para tua perdição, que ela aterrara naquele momento.
(Remate da irmandade dos moralistas: soubessem ler o livro das instruções que vem agregado à nascença. Ao que os personagens decadentes contraporiam: “ao menos não levámos uma existência enfadonha. Houve cores a embelezar a estreiteza do que fomos, a transformar essa estreiteza numa grandeza sem par.”)

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