28.3.14

O relógio que não dava horas

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O que queres de prenda?” A pergunta repetia-se todos os anos. Era uma fotografia do tempo reiterado, um caldo de monotonia que embaciava a luz diurna, como se por todo o tempo parecesse noite irremissível. “Não sei”, era a resposta também repetida, pois a mesmice não habitava só de um lado. “Surpreende-me”, vinha depois juntar-se à primeira parte da resposta.
Era um beijo envenenado. À míngua de criatividade, como podia pedir que fosse fautora de uma surpresa em forma de lembrança por ocasião de mais um aniversário? “Deviam banir este costume. As prendas deviam fluir ao sabor dos gestos espontâneos. As datas forjam esta inconsequência.” Não chegava para se se desembaraçar da função, todavia. Aquelas palavras eram um reconforto interior, selavam a árdua tarefa de dar cumprimento às convenções estabelecidas. Por mais que os dois se dissessem dissidentes das convenções, não queriam ser rebeldes julgados em tribunal alheio. Não adiantavam as lamentações em forma de elaborado raciocínio. Às duas por três, lá estava a furtada criatividade em esforço demorado para encontrar uma bússola que tivesse serventia.
Um dia, perante as arrelias que a impossível escolha afivelava, teve um lampejo de presciência: “oferece-me um relógio especial. Diferente. Um relógio que não dê horas.” Ao começo, não percebeu a demanda. Sentiu-se incomodada – o incómodo de quem não conseguia decifrar o sentido das palavras que pareciam linguagem em código. Não queria dar o braço a torcer e perguntar o que queria dizer com aquilo, pois se há coisa que os relojoeiros não vendem é relógios sem préstimo para a função para que foram inventados.
O silêncio que se pôs era uma medida angustiante. As palavras não podiam fazer o tirocínio da ausência, pois o silêncio já doía. Sem tirar os olhos do sol que desmaiava no fio do horizonte onde se fundia com o mar, atirou: “o relógio que não dá horas, podia ser a prenda que tanto te custa a imaginação a revelar. Podias ser tu a marcar no relógio a hora que seria sua matéria inerte. E eu trataria de perceber por que escolheste essa hora. Teria de ser uma hora singular, a singularidade vindo do instante que tivesses como especial. Eu diria as horas que são impassíveis. Como se o tempo ganhasse uma moldura intemporal. E nós fôssemos seus curadores, e por dentro dessa intemporalidade se autenticasse a perenidade do que somos.

1 comentário:

Lobo disse...

Gostei muito da profundidade do pensamento e do alcance intemporal que incorpora.