15.4.14

Mãozinhas gordas

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Era por todos troçada. Não era pela feiura, que os traços finos do rosto e a pele que parecia de veludo eram lenha para a inveja de muitos. Não era pela voz, que tinha linhagem radiofónica. Ou pelos olhos, que tinham um desenho perfeito, encaixados na cavidade ocular e repuxados por um discreto esgar oriental. Em contraste, as mãos anafadas eram caução do alvoroço.
Anafadas, suadas, unhas descompostas, dedos desproporcionais, largos e pequenos, as rugas nas dobras dos dedos tão acentuadas que nelas se podia alojar uma legião de parasitas. Que, todavia, era nas imediações da sua pessoa que se alojavam. De cada vez que entoavam escárnio e a deixavam mergulhada num silêncio envergonhado, acabrunhada porque julgava que os outros, os que não tiveram a desdita da opulência corporal e não se entregaram aos tormentos das hormonas disfuncionais, eram de casta superior. Vinha habituada da escola, onde aprendera a ser a mal amada. E se até professores segredavam à sua passagem a estranha silhueta, ela não podia divergir. Ensimesmou: ela era a aberração da escola, a aberração da universidade, a aberração de todos os empregos que tivera. Assim foi durante todo o tempo: apoucada pelos mesquinhos que não podia denunciar. Se o fizesse, seriam mais emboscadas. Bebeu, então, o cálice da resignação. Toda a adolescência e parte já importante da adulta idade tinham sido o isco de uma repressão interior fermentada pela vozearia maldizente dos outros.
Um dia, o chefe novo empunhou a revolta por ela. Um dos colegas que mais a escarnecia, sequioso das boas graça do novo chefe, comentou em tom jocoso os predicados que agilizavam o motejo. O chefe, senhor bem apessoado e, constava-se, cultor de uma beleza admirada, perdeu a compostura. O sarcástico personagem nunca mais seria ninguém na empresa. Não lhe foi perdoada a tarimba discriminatória. Fez-se constar o episódio por todos os departamentos. Até fora da empresa. Ela nunca mais foi incomodada. O chefe chamou-a. Disse-lhe estar ao corrente dos impropérios que sobre ela se abatiam. Encorajou-a a não ter vergonha de si mesma.
O chefe, homem solteiro e muito requisitado, saiu para jantar com ela. Foi assim todas as quintas-feiras doravante. Enfeitiçado com os dedos gordos que, a certa altura, passaram a ser sua certidão de afagos.

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