4.4.14

No desafogo da maré

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Pode acontecer: uma ira em combustão. A raiva que incendeia as veias e sobressalta a respiração, que magoa. Pode haver um rosário inteiro a fermentar essa ira. Descompõe-se o pensamento, fecha-se o rosto, encavalita-se a impaciência, jogam-se palavras injustas contra quem não tem culpa.
Mas essa ira não tem préstimo. Aplacá-la é imperativo. Para refrear o coração alvoroçado, para domar os gestos iracundos que fogem das pedras frias onde repousam os sedimentos da racionalidade. Ferver em água fervente não é irremediável. Podemos ser as (nossas) pedras de gelo que amputam a matéria fervente. É quando o olhar se dirige algures. Desde que algures esteja nos antípodas da ebulição que nutre a ira. Fora dessa consumição está o que importa.
O olhar mete âncora numa praia de maré baixa. Demora-se na areia molhada de onde o mar foi enxuto. Demora-se mais longe, detendo-se nas águas mansas que domesticam o sol que cresta. Buscam na areia molhada os nutrientes da quietude. Uns búzios pequenos, uns seixos erodidos, uma estrela do mar que espera pelo regresso da maré, um naco de madeira que veio por um rio abaixo até se perder na imensidão do mar, as pegadas dos albatrozes que dedilham o areal em busca de alimento. Os olhos cerram-se enquanto a cabeça se ergue ao céu. O silêncio é entrecortado pela maresia. Pelo sussurrar dos albatrozes que se refugiaram nas árvores por medo do sol que está a doer. Os olhos reabrem-se e deparam com a mesma paisagem que, todavia, parece outra diferente. As mãos estão molhadas. As calças também: a maré começou a regressar e o êxtase não deixou tomar conta das águas que vieram beijar o corpo sentado na areia.
Não importa. A maré deixou os sedimentos da moderação. As mãos molhadas contaminaram-se, num salutar contágio, com os sedimentos depositados pela maré que entretanto regressara. Tudo agora tem folga. E tudo regressa aos azimutes que interessam. A página foi virada.

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