25.4.14

O efémero lápis azul

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O jovem bacharel em letras chegou ao novo local de trabalho. A primeira tarefa foi assentar a agenda em cima da secretária, abrindo-a no dia correspondente: vinte e quatro de abril de mil novecentos e setenta e quatro.
Que incumbência lhe tinha arranjado o padrinho da mãe, senhor de negócios abastados no ultramar e de muitos conhecimentos no governo e na administração do Estado? Censor. Seria censor. Quando foi informado, suplicou à mãe que intercedesse junto do seu padrinho para lhe arranjar função – como dizê-lo sem ofender a linhagem do homem? – menos enfadonha. Podia a mãe invocar os seus precoces problemas de visão, que a exigente função de censor não se compadecia com horas a fio de leitura meticulosa, que podia deixar passar excertos de perigosa propaganda dos adversários do regime à custa da sua cansada vista. A mãe não cedeu, nem sequer aceitou dar duas palavras ao padrinho. Seria como ficou decidido. Ou preferia ser colocado numa escola nas lonjuras de Trás-os-Montes, onde os rigores do inverno e a gastronomia rural seriam piores fados para a sua franzina saúde?
Depois de abrir a agenda na folha do vigésimo quarto dia do mês de abril do ano de mil novecentos e setenta e quatro, o chefe despejou em cima da secretária uma resma de papeis. “Esta é a “correspondência” do dia. Tem aqui o senhor doutor o equipamento de que precisa, com os cumprimentos de sua excelência, o presidente do Conselho”, enquanto entregava em mão um estojo repleto de lápis azuis. Havia notícias de jornais nacionais, da atualidade internacional ao desporto e às notícias mais mundanas, da vida social. O chefe explicara que um novato não podia rasurar, em ato censório, a atualidade política nacional, que esse departamento era um reduto dos censores “mais trutas”. O chefe tratou de o acolher com hospitalidade (olhando à sensibilidade da função, e sabendo que sobre os mais jovens censores já pesavam suspeitas de terem ideais insurretos): a análise de notícias de jornais de circulação nacional era sinal de que não começava pela base da pirâmide dos censores.
Passou o dia inteiro numa azáfama. Leu, com a máxima atenção, o montão de notícias que se empilhara na secretária. Usou do lápis azul com critério e rigor, sabendo das exigências doutrinárias que o regime impunha. Nisso tivera boa escola: o pai e os avós maternos eram seguidores acríticos do regime. No fim do dia, não sabia se estava orgulhoso. Aquele fora o primeiro dia de trabalho depois de se licenciar, o que puxava lustro ao orgulho. Mas tinha as suas interiores convicções. Incomodava-o saber-se censor, reprimir uma liberdade primacial como a liberdade de expressão. Já deitado, não parava de se recordar como devolveu ao estojo o lápis azul que tanta liberdade de expressão rasurara nesse dia. Como queria tê-lo deitado pela janela, àquele e a todos os lápis que estavam no estojo à espera de serem gastos. Mal sabia que não os voltaria a usar. No dia seguinte, ao chegar à portaria do lúgubre edifício onde ia para o segundo dia de trabalho, o contínuo disse-lhe para ir para casa, que havia confusões na baixa, constava-se que havia uma tentativa de golpe de Estado.
Quarenta anos depois, após tantas voltas na vida, de tantas paragens demandadas e de tantas e diferentes ideias professadas, relê as palavras de uns autoproclamados vigilantes da democracia. Uns senadores atávicos, uns militares na reforma que não se cansam que lhes agradeçam por terem feito a revolução de abril e uns opinadores de curta memória protestam contra os danos na democracia. Advertem que voltámos a ter censura, como dantes. E ele revolta-se. Como se revoltou contra a sua consciência por ter sido censor por um dia apenas, mas por um longo dia; e revolta-se contra os senadores que se entronizam num altar de onde se julgam donos da democracia e de onde ostentam um conforto insultuoso, contra os militares jactantes e de retórica castrense e contra estes fazedores de opinião por embaciarem a probidade intelectual. Pois de cada vez que comparam o hoje que deploram com o ontem que foi de censura, pondo-os ao mesmo nível, nem percebem como ofendem a memória de todos os que foram vítimas do lápis azul da censura.

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