23.6.14

Uma estocada

The Orwells, "The Righteous One" (Live on Letterman show), in https://www.youtube.com/watch?v=prlVtauCl2w
Sentia que uma espada do tamanho do mundo fora desembainhada. Que a lâmina apurada andava em sua demanda. Pretendia não saber quem eram os algozes. Jurava inocência, que não fora engenheiro de maldades ou injustiças sobre outros, como ele se julgava, inocentes. Fugia da espada como podia. Escondendo-se nas vielas escuras, descendo aos subterrâneos que escondiam a fuligem do metro, transitando pelo bas fond da cidade, convivendo com o restolho da sociedade que por ali andava.
O pior não era essa espada ladina que o procurava sem cessar. Dizia-se que estes justiceiros não tinham complacência. Mal encontrassem o procurado, despejavam com força a espada, sangrando-o até à morte. Mas não era essa espada que fazia sobressaltar o sono. Era assaltado por fantasmagóricas espadas no quotidiano, nas gentes apoderadas que não tinham piedade de quem cuidavam estragar; nos endinheirados que (dizia-se à boca pequena) conspiravam para serem mais ricos e deixarem em legado mais pobreza aos que já nem remediados conseguiam ser; aos sacerdotes que ludibriavam as gentes de alma estragada com fés redentoras; aos diligentes na maldade gratuita.
Não era vítima direta dessas malfeitorias, mas elas adulteravam o seu sentido de ser. Era como se as espadas assim desembainhadas sobre os outros tivessem estocada colateral em si. Delas não podia fugir. Não podia arregimentar a hipocrisia que encomendasse os olhos para lugares distantes, simulando a ausência das dores da modernidade. Era quando queria outro tempo, não interessava se anterior ou projetado na posteridade. Outro tempo. Podia ser que nessa dimensão temporal paralela não houvesse tantas espadas decepando ilusões, tantas estocadas a derramarem sangue vertido sem utilidade. Suplicava aos deuses, em preces retóricas, que semeasse esse tempo diferente. Que inventassem uma nave espacial que o transportasse ao tempo diferente de que se julgava residente. Para não ser ultrajado pelo bolçar das espadas severas que esvoaçam, erráticas, apanhando quem estiver pelo caminho, sem critério.
A não ser possível um tempo alternativo, talvez não fosse mal pensada a estocada final. Ao menos, os olhos adormecidos não seriam o cais por onde assolam tantas iniquidades que coalham o mundo na sua terrível imperfeição.

1 comentário:

Museu Nacional de Soares dos Reis disse...

Outro tempo. Diametralmente oposto a qualquer “Disgraceland”.

“(…)
Tempo de absoluta depuração.
(…)
[mas]
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação."

"Os Ombros Suportam o Mundo", Carlos Drummond de Andrade.