31.7.14

A janela da alma

Linda Martini, "Partir para ficar" (ao vivo no Santiago Alquimista), in https://www.youtube.com/watch?v=cVaj3s4k91Y
Aberta, a janela da alma. Aberta, expõe-se ao que vem de fora e não se importa que de dentro dela haja uma unção para fora de si. No carrossel das emoções partilha os sentimentos, aloja as influências, que são um jogo de sentido duplo. A aprendizagem é o reflexo humilde do quanto de fora chegam sedimentos que se embutem na alma. Pois a ninguém pode ser dado dizer que uma personalidade é apenas o amontoado da genética interna.
À janela da alma estão à espera os pórticos de tantas naturezas. Uns insinuam-se benignos, mas no fim de contas são dissimuladas sementeiras que atalham o caminho para a tempestade duradoura. A outros pórticos não se reconhecem méritos quando a alma com eles se encontra. Mas há momentos em que a atenção reclama um posto. Se a alma não estiver distraída, ornamenta-se com os pórticos não atendidos ao início e que são, no fim das contas, a melhor abjuração de todos os males.
Às vezes, fechada a janela da alma. Porque há vultos temerários que adejam na forma de querubins, em o não sendo. Porque há ventos que sopram sem se desconfiar que trazem provações e enfermidades. Porque a alma precisa da sua hibernação. Precisa de achar um roteiro, ao início embaciado na neblina matinal, que remete ao início das coisas, onde tudo pode ser reconstruído sem nada provar a sua destruição. Fecha-se, porque há uma peregrinação pelos meandros da alma que assim aconselha. Para incessantemente interrogar, desde as mais complexas coisas às que são tingidas pela simplicidade.
É quando a janela da alma precisa de se esconder do mundo. Precisa de partir para ficar. Precisa de vaguear na intemporalidade por onde as memórias são pastoreadas. Porventura, para liquidar as memórias (boas ou más) que impedem o tempo presente. Até que os dedos saciados desprendam as pálpebras que se encerravam sobre os olhos e reabram a janela. Para a alma voltar a respirar o imenso mundo.

30.7.14

A fragilidade do efémero

David Sylvian, "Orpheus", in https://www.youtube.com/watch?v=4YuvdDPYEy0
As lágrimas enxugam-se. Por imperativo do tempo que se promete. Porque o tempo prometido não combina com as fraquezas vertidas nas lágrimas malsãs.
Se houvesse juras que pudessem ser alinhavadas, era para prometer que o tempo prometido seria honrado por dias seguidos com os olhos felizes. Através de um olhar grandioso, tirando as medidas às coisas belas que os arredores da existência ungem com seu perfume. As unhas cuidadas deitam-se a guitarras que soam mágicas, arquitetando um som cristalino como se fossemos músicos adestrados. Nos passeios pelo campo, somos ornitólogos ou peritos na fauna local. Contamos os pássaros que chilreiam e vertemos em pautas musicais o seu canto. Contamos as flores todas nos campos, deitando num cadastro as espécies diferentes que os olhos souberem captar.
À noite, entre dois copos de vinho e um lauto repasto, sobranceiros ao promontório que domina a cidade, cantamos as loas ao único tempo vivaz, o tempo que conseguimos deter entre os dedos. Querendo, retemos o tempo nas palmas suadas das mãos (então já não entrelaçadas). E fazemos destes instantes a moldura do tempo perene. Pois as fragilidades não quadram com a nossa particular quarentena que açambarca os sentimentos maiores. E por não sermos depostos em qualquer leito onde se acamam as fragilidades, não deitamos o olhar ao efémero que se componha. Deixamo-lo para as matérias vivas, as leis do universo, o pão e o vinho da química e da física, que não há força maior que os consiga dominar na sua transcendência. O resto é nosso. O tempo que quisermos, no tempo como o cinzelarmos. Temperando a preceito os dias que vêm com a paz que em nós se enquistou.
Em sabendo de tudo isto, somos guardiões do tempo que dantes julgávamos efémero. O que queremos não se tinge com o manto efémero. Do alto da nossa grandeza, somos fautores de uma alquimia que transfigura a essência do tempo. Se quisermos, o efémero pereniza-se. Pois somos, por dentro de uma força inextinguível, a antítese de todas as fragilidades por junto.

29.7.14

Os podres

Nick Cave and the Bad Seeds, "Jubilee Street (live at Glastonbury), in https://www.youtube.com/watch?v=-VdIEOMHHsE
Não é a beleza do mundo que está em causa. Não se diga que é uma latrina, irrespirável como são os lugares onde o ar é nauseabundo. Mas há podridões que tomam de assalto as consciências. Isto das consciências tem muito que se lhe diga! Falam das consciências como se cada um de nós tivesse de ser policiado pela sua própria consciência; e a consciência assim apascentada fosse a testa-de-ferro dos honráveis meandros da moralidade imposta.
Perturbações com a consciência: ele são os sobressaltos do passado, as vergonhas pretéritas, as vigílias ao outrora que massacram o tempo presente. A mania dos feitores da moralidade é patrulharem as verrugas que enxovalham quem nelas transita, pois são nódoas negras que mancham de vergonha. São céleres a apontar o dedo aos podres que não são os seus, pois os seus ficam escondidos numa dimensão oculta aos olhares que, como os deles, são alcoviteiros. E, todavia, todos temos podres. Talvez a começar pelos que cavalgam a função de esquadrinharem as sobras das vidas alheias só para, triunfantes, fazerem soar as trombetas que anunciam novo escândalo.
Os escândalos vivem sempre na porta do lado. Ao lado da porta do lado, que é a porta que aloja os vigilantes dos demais, o ar respira-se numa pureza ímpar, a alvura empresta-se aos muros caiados de pureza. Apetecia dizer: devia haver quem patrulhasse os meandros destes vigilantes ignóbeis. Mas não se diga tamanha coisa, pois decaímos num jogo que deploramos. Olhemos de frente para os podres que são os nossos. A condição humana nunca quis ser tutora da perfeição. E depois ripostamos a quem nos verbera: “o que têm a ver com isso?
Os podres pertencem à intimidade de cada um. Se são descobertos e um sequaz do mundo composto alvitra publicitá-los para que o mundo inteiro deles tome conhecimento, que a vergonha recaia em quem cuida da revelação. E não em quem foi apanhado no alçapão de uma qualquer podridão. Pois que estas podridões o são por causa dos pergaminhos falazes de uma moralidade malsã. É gente que devia praticar o que prega. Nessa altura, talvez, os podres viessem despidos do que têm de pejorativo. Para sermos gente mais saudável.

28.7.14

Profissão de risco: banqueiro

In http://3.bp.blogspot.com/_d63sI4E0bP0/TALnVozg8kI/AAAAAAAAD-c/VbavODYT0f0/s400/Ric+Salg+1.jpg
Isto já não é o que era dantes. O “DDT” – “Dono Disto Tudo”, como o rosto do BES gostava de se chamar a si próprio – pagou uma caução de três milhões de euros para não ficar na prisão à espera de julgamento. Algumas vozes oraculares asseguram que isto é tão tonitruante como uma mudança de regime. Não vou no exagero, para não misturar dois domínios que deviam andar sempre separados (mas não andam): política e economia.
Primeiro: ser banqueiro tornou-se uma profissão de risco. Por todo o lado. Há banqueiros bem colocados que caíram em desgraça. Uns, arruinados. Do mal o menos, pois outros houve que deram com os ossos na cadeia. Os desconfiados dirão que banqueiros destes amealharam muito ao longo do seu longo magistério. Não merecem condescendência. Um houve, protegido do guru da economia e finanças que um dia viu confirmado o sonho de ser presidente da república, que tão mal se portou que não se livrou da prisão, nem nos livrou, pagadores de impostos, de pagarmos todos os anos um quinhão da fatura. Outro não fez jus ao nome: dizia-se rendeiro, o que rende e faz render, mas não soube puxar os galões ao epíteto e estatelou-se na falência. O mais recente agraciado com a desgraça nem com uma mãozinha do Espírito Santo pôde contar (o que daria pano para mangas se a conversa se desviasse para assuntos de metafísica).
Segundo: afinal não se cumpre a maledicência dos que, da esquerda para a esquerda, juram a pés juntos que os senhores da alta finança são um Estado dentro do Estado, com avultadas regalias do mundo da política, tratando a justiça com sobranceria, sabendo que a justiça não os atinge com a sua luva sargaceira. Às vezes há motivos para esfregar o brilho da esperança: a justiça tarda, é lenta, mas faz o seu caminho. Ditando para a ata que a justiça é dona de um galho que não é invadido por políticos e senhores da alta finança. É nestas alturas que os putativos DDT ficam com um tremendo amargo de boca.
Terceiro: tão mal andam os banqueiros, com a honra enxovalhada, desapossados de parte importante da sua abastança, correndo o risco de serem insultados se meterem um pé à rua, que era a hora dos habituais tutores dos desprotegidos desembainharem a espada em sua defesa. Teria dois méritos, a ideia. À uma, veríamos os da esquerda para a esquerda desviarem as suas justiceiras causas para um alvo insólito. O inesperado é das melhores recompensas que o porvir semeia para memória futura. Por outro lado, os da esquerda para a esquerda perdem um inimigo de estimação. Ainda restam outros banqueiros para o abate seletivo, até que um dia os bancos sejam (assim sonham) todos nacionalizados e os da esquerda para a esquerda exultem, excitados. Enquanto o nirvana não vem, deviam acolher em seu regaço os banqueiros caídos em desgraça. Pois não é a esquerda, do centro para a extrema dela, que se ufana de proteger os desvalidos?

25.7.14

Irmãs siamesas

The Cure, "Siamese Twins", in http://www.youtube.com/watch?v=NFMWZ8g8ueM
Émulos. Com sintonia de tudo. Das dores, das alegrias, das consumições, dos apartados da vida, das recompensas que perduram na memória, dos sabores. Um olhar que se trocasse valia mais que mil palavras. Adormeciam em uníssono, passavam pelos mesmos sonhos, objetavam as consciências como se de uma só se tratasse.
Quando eram pequenas vestiam a mesma roupa. Tão iguais eram que só os habituais da sua companhia as conseguiam distinguir. As vozes eram semelhantes, o olhar tinha as mesmas cambiantes, as mãos pousavam como se uma fosse a fotocópia da outra – pareciam conchas simétricas. Até no falar eram um retrato fiel. Cresceram como se tivessem nascido siamesas. Não fora o caso, mas os entendidos no estudo da personalidade garantiam que jamais tomaram conhecimento de irmãs tão gémeas. Como de rotineiras análises ao sangue resultou (sem surpresa) uma identidade tão perfeita, a genética interessou-se por elas. Foram precioso caso de estudo dos peritos.
De fora, elogiavam a paciência das gémeas, o seu desapego pessoal em nome da ciência. Ignoravam que elas estavam interessadas na prestação da identidade genética: tinham feito uma aposta quanto à infinitésima ordem de diferenças entre ambas. Uma apostou numa margem de tolerância inferior a dois por cento. A outra acreditava mais nas semelhanças, pois estava convencida que não diferiam em mais do que um por cento. Se tirassem a bissetriz das apostas, fazendo delas a meação, adivinhavam o resultado. No ADN eram diferentes em apenas um e meio por cento. Os peritos ficaram boquiabertos. E ainda mais ficaram quando emparelharam conhecimentos com os peritos do comportamento que esquadrinhavam as gémeas. Por entre tanta igualdade, diferiam na estética das artes, nas ideias políticas, no ativismo cívico, no sentido de humor (ausente numa delas). E, todavia, entre tanto mar de diferenças, nunca discutiram.
Um dia houve que um rapaz, enamorado por uma delas, descobriu outra diferença. Ninguém, a não ser elas, sabia que tinham feito fizeram um pacto de partilha de namorados. O rapaz estranhava que num dia estivesse impetuosa e no dia a seguir aparecesse quase indiferente. Depois descobriu que a frígida era a que tinha um sinal mais pequeno na nádega direita.

24.7.14

À fonte dos sarilhos


Unknown Mortal Orchestra, "So Good at Being in Trouble", in https://www.youtube.com/watch?v=PERf5un2nC0
Era repasto ao pequeno-almoço: um copo da água recolhida na fonte dos sarilhos. Não parecia aprender com o tempo passado, com os sobressaltos fermentados em sarilhos incessantes. Era na companhia dos sarilhos que medrava os sentimentos. Fora deles, era como se tudo fosse uma paisagem árida e o tempo fosse uma cautela penosa. Não queria a monotonia da normalidade. Já nem curava de entender por que a imensa maioria tinha sede de normalidade; os outros podiam ser como bem entendessem. Mas não admitia que o julgassem pelas bitolas que escolhiam suas, pois ele vogava por outra diferente.
O mau feitio assoberbava os sarilhos. Fazia de propósito: era rude no trato, humilhava quem tinha a ousadia de o desafiar, era violento se alguém batesse o pé, não admitia rebeldia maior do que a sua. Provocador nato. Tantas vezes pegou de caras batalhas espúrias, tantas vezes soprou para dentro do copo só para fazer de uma gota transbordante uma tempestade desatada. Tantas vezes insultou gente e foi insultado. Pois só num estado febril admitia levar os dias sem que fossem colonizados por uma monotonia impante.
Um dia acordou diferente. Perguntou se não seria tempo para deixar as cicatrizes ganhar madurez. Se não tinha chegado a altura para deixar de arregimentar cláusulas fátuas com o propósito de se deitar furiosamente às fuças de quem fosse oponente. Via os cabelos brancos quando se fitava ao espelho pela alvorada. Não seriam compatíveis, tais cabelos, com a agressividade que tirava o freio à mansidão que o ensandecia. Mas talvez estivessem as fronteiras a carecer de nova ordem. As importunações eram carestia implacável, um rosário de sobressaltos ganhando espessura, amarrado os nós do envelhecimento. Não queria continuar a dar com os ossos em esquadras depois de um pleito mal acabado. Não queria dar de caras com adversários mal encarados em tribunal, incapazes de admitir a humilhação de uma derrota numa refrega em que os corpos foram usados.
Estava convencido que não adiantava adiar o envelhecimento. Não conseguiu conviver muito tempo com o propósito. Era um corpo estranho invadindo-o por dentro. À primeira oportunidade, tirou as medidas à noite e fez-se aos problemas. Acordou dorido, dois dentes partidos, um hematoma visível na testa, talvez uma costela fraturada, tantas as dores por ali. E sorriu. Com o sorriso ensandecido de quem se alimenta de sarilhos.

23.7.14

Os jograis dos cataclismos


In http://www.tabacaria.com.pt/lusiadas/restelo.jpg
Um taxista barrigudo que é sabedoria transversal. Um empreiteiro que ainda usa um Mercedes atávico. Um aspirante a catedrático que mede tudo pela bitola da história, prolixo em adjetivos. Outro, informático, que baba lugares-comuns ao abrigo da imensa sapiência que só ele consegue lobrigar (no que o espelho da casa de banho deixa pressentir), enquanto larga chistes que só a ele provocam gargalhada. Uma varina ladina, com esparsa pelagem facial a preceito, debitando pregão com pronúncia intensa. Um ativista reflexivo que acorda todas as tardes com o vício da cidadania ativa. O carteiro que lê muitas revistas cor-de-rosa e sonha acordado. O meteorologista que sindicaliza os colegas entre duas reuniões do partido. O sindicalista que se farta de trabalhar a pouco fazer. Um aluno calaceiro, cuja mestria é o ardil. Um jornalista peçonhento, que embirra com o bom feitio dos que o têm (à falta que o bom feitio nele faz). Um arquiteto com um pé na autarquia e outro no gabinete de projetos, sem que alguém possa levantar dedo a perguntar pela ética. O sacerdote que tem uma coleção de revistas de luxúria (provando que os curas também são homens). O louco que fugiu do manicómio e erra pelas ruas da cidade e ninguém dá conta da sua demência. O personal trainer, titular de outra demência (não diagnosticada). O ladrão profissional, atrevido e metódico, preguiçoso e sociopata. E o ladrão por causa do vício das drogas, desastrado. A meretriz grosseira, coxa grossa e flácida. O empregado do balcão que ainda usa mangas de alpaca e não toma banho assíduo. O funcionário da repartição de finanças que passeia a arrogância de quem subtrai réditos ao cidadão e disso faz ostentação de poder. O professor que vocifera enquanto os colegas tentam fazer um exame. O matarruano das estradas, cavalgando o enorme camião enquanto palita os dentes. O jeitoso convencido que é um sedutor, mal sabendo que ao virar das costas as donzelas suspiram de alívio. O erudito das bainhas dos livros. O bêbado ao cabo da noite, cambaleando palavras ininteligíveis. O jardineiro boçal, almoçando com as mãos ainda encardidas. E o velho, arrastando a sua senilidade.  

22.7.14

Música de desintervenção

In http://3.bp.blogspot.com/_gfY0PifJ0dk/THKQgkJIqnI/AAAAAAAABC8/pig24QRw_RE/s1600/MULHERe+violão.jpg
A tentação das dicotomias. Pueris, como nos filmes de cowboys, ou nas sagas que doutrinam que os americanos são sempre os bons e os inimigos de ocasião, por inimigos serem, arrostam com a indignidade de serem os maus da fita.
Talvez a música de intervenção esteja a precisar de ser desintervencionada. Talvez nem tudo seja tão simples como é retratado pelos cantores que usam a música para doutrinar as massas. Não sejam estas palavras entendidas sugestão de silêncio; talvez assim conviesse, para os cultores do género se colocarem em posição tão por eles comprazida, que é a posição de vítima. Não é disso que se trata. Que os megafones e os comícios e as palavras de ordem continuem bem altos, audíveis por onde queiram ser ouvidos. Mas não se faça deles imperativos categóricos. Não se enquiste na música de intervenção um mundo a preto e branco, o eles e nós (os oprimidos), porque eles, os da banca e do grande capital, tudo o que querem é deixar-nos num permanente estado vegetativo no limiar da pobreza. Pois, em assim estando, ficamos vulneráveis. Dependentes da boa vontade dos endinheirados, que nos pagam soldos de miséria e clamam pela nossa gratidão por não estarmos imersos num lodaçal de maior miséria.
Desconfiemos da generosidade cantada nas músicas de intervenção. Pois a história também serve para tirar lições, e da história resgatamos tantos atropelos selados pelo punho de próceres admirados pelos intérpretes da música de intervenção. Desconfiemos quando se encantam pela igualdade: pois o contexto e as circunstâncias da história trataram de mostrar o que acontece quando, sob o jugo da igualdade, tantos ultrajes à dignidade humana são praticados. A sanha persecutória aos ricos não será diferente da ganância que percorre as entranhas de alguns ricos que praticam o capitalismo suicidário. Por conveniência, os pastores da música de intervenção tomam a árvore pela floresta. Para fazer jus à puerilidade em que estão embebidos. Antes se dedicassem à música para infantes (ou não, para não se tentarem pela doutrinação dos petizes, por certo empreitada mais ágil dada a tenta idade da audiência).
A música de intervenção precisa de ser descosida por dentro. Desintervencionada, portanto. Com padrões estéticos que não deslustrem, se não logo dirão os habituais zeladores que açambarcam as bissetrizes da estética que o género da música contra-intervenção é destituído de faculdades estéticas. Nessa altura, para além da batalha de estéticas do agrado dos que se enamoram pela subjetividade das coisas, podiam os cultores da música contra-intervenção reclamar o seu lugar. Metendo as mãos na mensagem, um farol que quer desmascarar o engodo da música de intervenção. Podiam denunciar o oportunismo da causa: pois é mais confortável ser porta-voz do que julgam uma imensa maioria (os oprimidos pelo nefando capital). Todavia, a lógica dos números às vezes não combina com a simplicidade aritmética. Caso contrário, a extrema-esquerda, por onde habitam os intérpretes da música de intervenção, tinha o monopólio inter-temporal da governação.
Não haveria ricos. E toda a gente seria feliz. É pena que o povo seja tão bronco.

21.7.14

Que não te roubem o arco-íris


In http://hypescience.com/wp-content/uploads/2012/09/twinned-rainbow.jpg
Tens direito a açambarcar o que consideras ser teu, exclusivamente teu. Tens direito a ser tutor do que apregoas ser teu critério de felicidade. Ninguém tem nada a ver com o teu módico de jubilação, por mais que outros o achem frivolidade. Ninguém se aproprie dos teus sentimentos, nem colonize tuas palavras. Ninguém seja fiel depositário das lágrimas que vertes, dos sonhos que abonas, dos humores variáveis, dos sorrisos espontâneos, dos espelhos por onde tomam lustro as cambiantes do teu ser. Pois tens o direito a seres o que queres, nas horas que te apetecem, na forma estruturalmente tua de que não deves justificação a ninguém. Pois tu és um universo inteiro. Maior do que o mundo inteiro, aliás. Não pode haver quem se oponha à natureza que é um emaranhado em ti. Julgam-te complexo, contraditório, provocador por causas inúteis, pueril e ao mesmo tempo curador de uma pose grave; julgam-te por aquilo que convém ser a bitola do tempo que passa, passando um xeque em branco à memória esquecida que, não fosse esquecida, selava o oposto do que em ti querem ajuizar. Mas nada disso importa. Não interessam os espelhos atávicos dos outros – pois esses espelhos, caso tivessem serventia, chegavam sempre atrasados ao tempo de que és maestro único. Não interessam os juízos nem os preconceitos, pois não são eles o oxigénio de que dependes. Que a indiferença seja o mote. Deixá-los entretidos nas suas néscias pessoas, atamancados na sua pequenez irremediável. Deixá-los emparedados nas suas vidinhas sem sal, pois por assim serem é que tanto se importam com as que não são suas e temperadas são pelo sal que neles desampara a cobiça. Empilham-se no arquivo da memória os dizeres bastardos sobre ti. Deita-os ao vento. Só quem tem merecimento é que merece estima. Aos demais, que bolçam sentenças banais sobre o que lavra sua, credite-se um desconto pela falta de coluna vertebral, ó pobres criaturas mundanas.

17.7.14

O que é um lambe-botas?

In http://1.bp.blogspot.com/_YdmU3l8FD_w/S9GdyQ1km7I/AAAAAAAAArE/Gn4pllFq2Vw/s320/BAJULADORES.jpg
Dizem que é da genética. Noutros, ser lambe-botas é comportamento (adaptado). Por conveniência ou oportunismo, desfazem-se em cortesias vãs perante as pessoas que acham que devem pajear.
Para o caso, não interessa a distinção – se é inato ou apenas oportuno ser uma carraça que se humilha e acha que a humilhação derrete o bom coração dos que mandam, para os que mandam decidirem em seu proveito. Os lambe-botas não têm autoestima. Na hierarquia das espécies, apareceriam como invertebrados, os animais sem espinha dorsal. Andam imersos todos os dias numa hipocrisia aviltante. Ele são genuflexões embaraçosas, palavras elogiosas que mais parecem uma dose de veneno, uma simpatia untuosa que se insinua falaz. Ser-se lambe-botas (sobretudo se for por comportamento adaptado) é, talvez sem darem conta, uma exibição pungente das fraquezas. Para serem lambe-botas é porque acham que não têm méritos próprios para conseguirem o que querem. Ou porque acham que consome menos forças manobrar no bas-fond das influências com palavras mansas, duas pancadinhas nas costas e o pedido de soluções que não estão nos livros.
Seja como for, é humilhante. Para quem é lambe-botas, que nem mede o estado larvar em que se arrasta quando aparece como pajem dos “poderosos” que podem decidir a seu favor. Também é embaraçoso para os “poderosos”, sobretudo quando, em o sendo, rejeitam o usufruto do poder que cativa o respeito dos outros que se transfiguram em lambe-botas. É um estorvo por causa do poder que os lambe-botas entronizam nos lambidos. Em sendo o caso de estes serem alérgicos ao poder. É humilhante e transpõe a fronteira da hipocrisia. É o caso dos lambe-botas que o passaram a ser por conveniência. Pois dantes o não eram. Uma mudança de circunstâncias muda as ideias (o poder que passou para as mãos de quem passa a ser desiderato dos lambe-botas; ou a compreensão de que os fins são uma miragem se o “poderoso” não for cativado como soe ser). Passando a haver uma hipócrita e dispensável genuflexão.
Os lambe-botas são como os mosquitos que adejam de atalaia à primeira distração, para aferroarem o aguilhão e sugarem uma dose de sangue da vítima que, antes de o ser, era o desiderato dos lambe-botas.

16.7.14

Morder no pescoço

Mão Morta, "Cão de Morte", in https://www.youtube.com/watch?v=Rm_qnHfeTsE
Mordem, as mães gatas, no pescoço das crias, para nelas pegarem. Mordem-se os amantes quando a luxúria está em ebulição. Mas mordem-se os que vêm com paninhos quentes, insidiosamente oferecendo prebendas para a alma, sem que o agraciado note que vai ser mordido no pescoço como o fazem os vampiros às suas vítimas. E mordem-se, ainda, as bestas que sobrevivem alimentando-se umas das outras.
Não será aleivosia fatal se a bissetriz for a real espessura do que existe: uma selva de betão com os predicados das almas a condizer, empedernidos. Às tantas, parece que anda meio mundo a tentar encavalitar-se na outra metade, nem que para tal seja preciso afiar os punhais e espetá-los bem fundo, sangrando até à morte quem aparecer pela frente e se fizer estorvo. Se o oponente for um desconhecido, a frieza com que a empreitada acontece é sugestiva do selvático estado da coisa; em sendo um conhecido que é preciso sacrificar no altar da ignomínia pessoal, arranja-se à mesma mordê-lo no pescoço, deixando-o lívido e apartado da contenda.
Morde-se no pescoço por boas e más razões. Ambivalência que é selo da modernidade. O mesmo gesto pode ter boas intenções ou ser um denso novelo que esconde malévolas finalidades. As pessoas que se mordem quando os sentidos se embebem de lascívia, ou as (talvez) mesmas pessoas que se mordem mercê da liquidação do outro. Podemos ser, de um instante para o outro, admiráveis e bestas. A arma de arremesso é silenciosa, parece não causar dor. Depois de mordido o pescoço por inestimáveis amigos fantasmas, a cicatriz grita bem alto o mal infligido. Podemos acautelar que nos mordam no pescoço? É um jogo aleatório. Pode ser reconfortante, pode ser agressão. Quando o sabemos? Na dúvida – mandam os preceitos dos cautelosos – evitemos que nos mordam no pescoço. E se aparecer uma figura melíflua que esconde a sua terrífica feição detrás de uma virgínea aparência, quem a pode tomar por personagem vampírica?
Sejam entronizados os preceitos que nos mandam precatar e vamos a caminho da insípida forma de ser. Não é melhor diagnóstico.

15.7.14

A balsa dos renegados

In http://www.caiofabio.net/Arquivo/Image/sociopatia.jpg
A lua nunca era cheia, nem sequer nova. Amarelecida, projetava a luz timorata sobre a balsa que errava ao sabor dos ventos que soprassem. Lá dentro, os renegados todos. Sem linhagem, talvez sociopatas, tresandando a asco, isolados por se não reverem nos cânones que faziam lei à conduta dos homens.
Não se importavam. A ilha flutuante que os acolhia era um refúgio dos lugares que eles tinham renegado. A páginas tantas, discutia-se, desde o cais onde os lentes tomavam função, se tinham sido renegados contra a sua vontade ou se o estatuto partira deles. Ninguém lhes perguntou o que achavam sobre o assunto. Quem o fizesse arriscava resposta torta. Ou não aceitavam que, desinteressados, dissessem os renegados que eles é que cavalgaram a sua própria exclusão.
A balsa rodava pelos mares. Tinha propensão para se fazer contra as marés, pois a dissidência era higiénica. A lua a contrapeso, o sol com pergaminhos baços, as nuvens que nunca eram brancas. E as águas do mar por onde a balsa sulcava faziam-se lamacentas mal sentiam o casco enferrujado. Os renegados nem se falavam: cada um era uma ilha dentro de si. Conviviam em paz podre. Estavam condenados a serem voluntariamente reclusos do isolamento a que se entregavam. Em não sendo possível haver uma ilha para cada um, juntaram-se num antro que só o não era para eles. Para os demais, aqueles que circulavam na normalidade e repudiavam a renegada condição dos renegados, contavam-se histórias amaldiçoadas para os petizes tomarem consciência dos caminhos por onde eram aceitados os do bom rebanho.
A balsa dos renegados nunca ia a terra. Os mantimentos aportavam através de pequenos mercadores que não temiam as fuças enfurecidas dos renegados. Tinham um pacto com os renegados. De volta ao cais, os mercadores não diziam palavra. Era o pacto de silêncio que mantinha o estertor dos renegados. Deixava-os longe da curiosidade dos habitantes salutares. E selava a sua sociopatia irremediável. Naquela balsa cada renegado dançava para o seu lado. E nunca era valsa o que na balsa dos renegados se dançava.