9.7.14

Homem ao mar

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Mar tumultuoso, leito agravado por onde o navio se fez, destemido. Os marinheiros não tinham medo. Os calos nas mãos, por onde se afivelam os nós que lacram os mastros, enxugavam os medos dos mares medonhos. Os pesadelos desses pertenciam aos outros, aos que nunca foram embarcadiços, aos que sonhavam sulcar os mares de cais a cais. Pois os marinheiros não mostravam medo.
Mas o mar tumultuoso não é para se lidado de ânimo leve. Ele é um contestatário irrefreável. Pode tragar a embarcação, pode furtar elementos da tripulação para o mar assassino. Não há desatenções quando o mar se enfurece. Os marinheiros não cobram horas ao sono quando as tempestades acontecem fora de horas (as tempestades não têm hora marcada). Vão pela noite fora domando as contrariedades, resistindo ao vento tempestuoso, apanhando com os volteios do mar que, em forma de ondas fragorosas, se despedaçam no convés. Não mostram medo, mas lá no fundo há um pedaço deles que está transido com a possibilidade de alguém gritar “homem ao mar” e que esse embarcadiço seja o homem ao mar.
E acontece: “homem ao mar”, grita o marujo mais novo, a voz angustiada pela imagem dilacerante de ver outro marinheiro sumir-se entre a escuridão da noite e o mar alterado. O marinheiro debate-se na água, apela à apneia que consegue enquanto procura desembaraçar-se das galochas que não devia ter calçado. Sente-se empurrado de um lado para o outro, pela força centrífuga da água, que ali parece medrar em frequentes remoinhos. Debate-se. Procura a superfície, porque a apneia está quase a extinguir-se. Consegue. Não lhe serve de muito. A cabeça fora de água é logo submersa por outra onda furiosa que veio devolvida pela parede da embarcação. Emerge outra vez, os braços e as pernas nadando como podem para não serem derrotados pelo mar que o quer seu.
De repente, uma corda ondeia à sua volta. São os outros marujos, talvez ainda mais aflitos, que o querem salvar. Mas a mão estendida não consegue alcançar a corda. Um deles lança um bote à água. Inglória tentativa: o pequeno bote foi tragado por uma onda maior que sobre ele se deitou. Noutra emersão à superfície, o náufrago achou um guarda-chuva gigante, tão grande que lhe pareceu maior que o mastro-mestre do navio. As mãos chegaram ao guarda-chuva, prenderam-se a ele com toda a força.
Içado a bordo, náufrago já não era. E quando julgava que os sentidos regressavam estando rodeado dos outros marujos e de uma mala de primeiros socorros, ensopado e em hipotermia, deu consigo lavado em suor no meio dos lençóis de linho que engravatavam a sua cama no navio. Ele, todavia, não acreditava em presságios.

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