1.8.14

Choque frontal

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Dois dementes coincidiram na estrada. Evento raro, diziam os peritos em probabilidades estatísticas. Porventura nem tanto, contrapunham os agentes da brigada de trânsito que tropeçam em acidentes de viação, ou os médicos que conduzem as ambulâncias até aos trágicos destinos que deixam as estradas pintadas com sangue.
Dois dementes. Em sentido contrário. Os dois, coincidentemente, no auge da loucura. Estavam capazes das loucuras de pior porte. Só tinham lucidez para, mecanicamente, levarem os automóveis como se eles fossem conduzidos em piloto automático. Não sabiam as cores das paisagens que haviam percorrido. Não sabiam se era manhã ou tarde. Não sabiam em que dia estavam. A não ser que era o derradeiro dia do conhecimento. Os dois tiraram o dia para o suicídio. Não lhes ocorreu que o ato tresloucado podia tirar a vida a inocentes. No outro carro, contra o qual esbarrariam o seu, podia ir gente sem culpa formada. Isso não importava. A demência dissolvera a lucidez. Era como se apenas houvesse no mundo a sua pessoa e a urgência em deixar de o ser. Mal tomassem a decisão de atirar o carro para o outro lado da estrada, o demais deixava de importar. Assim como assim – coincidam no pensamento paradoxal – a história está repleta de inocentes que deixaram de viver sem culpa formada. Seria mais um par de pessoas a figurar no elenco.
O sol estava a pino. Fazia calor – devia ser verão. Chegaram a uma reta comprida. Cada um na extremidade da reta. Parecia que a estrada tinha um desenho caprichoso naquele lugar. As extremidades da reta eram os promontórios, descendo vagarosamente até a um vale. O vale parecia equidistante das duas extremidades da reta. O sol abrasador derretia a estrada. Cada um de seu lado, avançaram em velocidade lenta. A estrada estava por conta deles. Meteram velocidade nos carros, aproveitando a descida. À medida que os dois carros se aproximavam, a velocidade crescia e o tempo, de repente, pareceu ficar suspenso. Os dois condutores conformaram a demência: apesar da velocidade estonteante, a paisagem que devia passar pelos automóveis estava inerte.
Os dois, coincidindo no gesto, começaram a apontar para o meio da estrada. Estavam quase no vale. Coincidiram no impulso suicida: ao mesmo tempo, meteram a direção para a esquerda. O choque frontal fracassara. Os dois homens recuperaram a consciência. Pararam no topo da reta. Na muita distância, entreolharam-se. Não conseguiram discernir, entre os distantes vultos, quem eram. Limparam os suores frios. Pareciam arrependidos da tentativa de choque frontal. Ato contínuo, cada um seguiu à sua vidinha.  

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