25.9.14

A morte que se deixa matar



Mão Morta, "Preces perdidas, in https://www.youtube.com/watch?v=D_3p8jXmbMs
O ateísmo tem impressões digitais. Uma é o incómodo da morte. Pois se não há, para o ateu, vida depois do corpo se extinguir, a finitude é certa. E com a finitude vêm sobressaltos. A morte como cais de chegada, sem terreno por além para esmoutar. A morte como ponto final, sem parágrafo a acenar-se, promissor, por entre um céu luminoso por onde adejam centelhas de sol rompendo entre as timoratas nuvens. A morte como morte. A finitude. Sem amanhã sobrante. Ou idílicos palcos celestiais, nem sequer hipótese menos pueril que são as lembranças que sobrepujam a física finitude. Pois a visão que se toma, indivíduos que somos, é a que vem ao olhar através dos olhos próprios, não pela decantação de olhos outros.
Mas agora, ateu ainda e sem alívio, convenci-me da morte. Pois se não fosse a morte, estes lugares que habitamos estariam congestionados de gente. Se um sortilégio onírico nos trouxesse a imortalidade, havia gente a mais, gente aos caídos, corpos em desuso, pessoas apenas hibernações de si mesmas, ossos alquebrados, a decadência fatal dos Homens. A morte é precisa para levar com ela o fantasma do congestionamento de almas.
Todavia, a morte continua alma penada quando o seu vulto é nossa imediação. Obriga a interiorizar o sentido de tudo. A temer que o tempo afinal seja escasso – ou ainda mais rarefeito que a imagem que temos dele. Mas se a todos acontece, não importa a angústia do óbito. Quando deixamos de contar, é porque a folha do calendário caiu a nossos pés e já nada conta para a extrair ao chão. Fica ali, a errar pelo chão enquanto o vento frio sopra vindo da noite que foi célere. É o cais final, onde o corpo amarra e é levado pela infinitude do vento glacial. O corpo transfigura-se em matéria. Perecível. Vai para lado nenhum, a não ser os despojos, atirados para uma cova lúgubre, ou espalhados ao vento que estiver a preceito, ou vertidas no mar tão largo que não chega, porém, para as cinzas que lá forem acamadas.
Coisa diferente, e que ainda causa angústia, é perceber se o tempo coalhado, o tempo que se inclinou ao chamamento da morte, foi tempo capaz de levar vencimento da vida. Às vezes, é pouco. Quase sempre há de ser pouco. Mesmo quando as velas foram sopradas tantas vezes e delas já não há lugar à memória. Mas quando a morte vier, que se mate a morte pela extinção de tudo o que foi conhecimento. Para, então, a morte deixar de ser inquietação existencial.

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