29.10.14

Os piratas dos sonhos

Scout Niblett, "Kiss", in https://www.youtube.com/watch?v=0uDlvl7jNn8
Há gente criminosa que tem por passatempo insinuar-se nos sonhos dos outros. Gente sem escrúpulos, tomando conta daqueles sonhos, neles semeando personagens improváveis, ou personagens indesejáveis, ou personagens que parecem saídas de uma tela surrealista.
Como nos computadores: gente que entra onde não é chamada. Intrusos sem remissão. Gente que se apodera da vontade dos outros, que os outros, por anestesia dos sentidos, não podem medir meças. Cozinham os sonhos pelos meandros que são a imagem da vontade dos intrusos que se apoderam dos sonhos que não são deles. Têm um prazer mórbido: acham-se superiores por serem domadores dos sonhos que povoam sonos alheios. Acham que lhes é dado desprender dos trajes que são seus para se meterem por dentro das existências que lhes são exteriores. São mesquinhos domadores de ventos oníricos que não vão e vêm ao acaso. O acaso seria se não houvesse vontades outras a embaciar sonhos que seus não são. Esses seriam sonhos legítimos, sonhos embebidos na espontaneidade acasalada com as asas do sono.
Os criminosos que querem ser quem não são, ou fermentar o desassossego no sono de quem o queria aplacado de importunações, são bestas negras que não sabem viver dentro das baias que são a sua própria existência. Só existem se extravasarem das margens que acomodam o que são. Não interessa que venham ventos tempestuosos descompor o sono nos sonhos que eles conseguem comandar. Não interessa que os sobressaltados acordem a meio do sono, único modo de interromper o cenário deletério que veio ao seu regaço por vontade alheia à sua. Os piratas dos sonhos riem-se a rodos quando são testemunhas oculares do desassossego da alvorada dos outros.
Ninguém consegue ter freio nos piratas dos sonhos. Eles deviam rodar os olhos para dentro de si mesmos, espreitar o bolor que os consome, a tremenda fraqueza de quem se certifica ser de uma força sobre-humana. Talvez por isso prefiram a transfiguração das almas que atormentam quando conseguem colonizar os sonhos que não são de quem os sonha, mas de quem mandou que outros por eles sonhassem.
Oxalá houvesse justiça divina. Para devolver, em dobro, o sobressalto de quem apoquenta as águas remansas que deviam ser os sonhos dos outros. E neles deixasse uma perenidade aflitiva.

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