12.11.14

O cidadão (já não quer ser) exemplar

LCD Soundsystem, "I Can Change" (live at Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=q-G1NltxNqE
Mudar deixa cicatrizes. É um abalo telúrico. Sobram escombros e promessas de reconstrução. Pela frente, a vastidão da diferença. Há quem lide mal. É uma aventura. É como passar o corpo por entre um túnel estreito. Os que sofrem com a exiguidade, não arriscam. Mudar pode ser o extermínio.
Ele mudara. Ao cabo de uns tempos de mudança, começou a interrogar se estava preparado para ser a mudança do que sempre se conhecera. De resto, pelos cânones da normalidade, os sinais da transfiguração eram recomendáveis por gente bem posta. Ele próprio sentia-se (por assim dizer) apaziguado. Já não se sobressaltava com as facas interiores que se jogavam, num jogo aleatório, contra quem viesse (enquanto dormia). Às vezes, contra ele próprio.
Outras feridas foram cinzeladas pela condição de bom cidadão. Havia uma apoplexia latente: era como se sentisse que vestia roupas que não eram dele. Uma impressão ambivalente: a quietude da cidadania exemplar vinha tingida com ventos quase parados, não havia turbulência a apoquentar a alma; ao mesmo tempo, sentia por dentro uma dor que só conseguia explicar por intuir que a exemplar cidadania não era inata. Faltava um chão que se habituara a pisar, pedregoso, instável, escorregadio. O chão que pisava em sendo exemplar cidadão parecia o mar chão que recebe, bondoso, os navios que sulcam os mares.
Talvez fosse imperativo mudar a mudança. Operar por dentro da mudança outra que o trouxesse para fora da exemplar cidadania. Não conseguia conviver com a valsa de falazes sentires que tomava conta das relações entre os exemplares cidadãos. A indumentária do exemplar cidadão não lhe servia a preceito. Era um corpo estranho dentro dessa indumentária. Perdera as rédeas ao irrefreável. Não se convencia das palavras castradas que vêm ao de cima quando as sensibilidades não devem ser amesquinhadas – outro atributo do cidadão exemplar.
Como não conseguia fazer de conta, mudou o que mudara. Não conseguia fazer de conta para fora de si. Mas o mais importante, é que não conseguia ser um engodo para si mesmo. Foi fermentando uma nostalgia da rebeldia impertinente. Ao menos, experimentara a cidadania exemplar. As roupas dele não eram essas.

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