24.12.14

Conto de natal (versão 2014)

Felt, "She Lives by the Castle", in https://www.youtube.com/watch?v=mp7H26XcqoU
O rapaz já não estava em pulgas. Como fora em anos anteriores. Dantes, contava os dias que faltavam para a véspera de natal. Era por causa das prendas (que já fora contaminado por um dos males da civilização materialista) e era por causa de todo o ambiente.
Gostava de descer às ruas movimentadas do centro da cidade para ver a azáfama de quem comprava os presentes deixados para a véspera, ou as pessoas que se abasteciam dos mantimentos precisos para a ceia de natal. Gostava do cheiro que vinha da cozinha quando a avó fritava as rabanadas e depois os sonhos – aquele cheiro inconfundível em que a canela era rainha. Gostava da ceia de natal: ao menos naquele jantar as pessoas não punham caras de enterro, nem se digladiavam em discussões destemperadas. Gostava do momento em que a família se arrastava pela noite fora nos lugares à mesa, saciando a gula na maratona de sobremesas, jogando para passar o tempo, fazendo apelo à paciência quando os mais novos subiam aos píncaros da excitação por não verem a hora do pai natal descer pela chaminé cheia de fuligem que, todavia, não existe nos apartamentos citadinos.
Mas isso era dantes. O rapaz estava farto do natal. Já não acreditava nas fantasias que se colam à época. Pela primeira vez, achou o natal datado. Talvez estivesse a crescer. A cansar-se de ser criança. Nesse natal, quando lhe perguntaram o que queria de prenda, respondia sempre “quero deixar de ser criança”. Notara que a meninice é uma patranha dos anos vindouros. Alguém – um mais velho, por ocasião de uma pré-depressão pós-natalícia no ano anterior – o advertira que a infância é um engano para o muito tempo de vida que vem depois. Toda a fantasia, a inocência própria da idade, o encantamento com que as crianças são puerilmente burladas a ver as coisas do mundo – tudo era um ardil para enganar as criancinhas. Ou então, apenas uma anestesia que era impreparação para o crescimento que vinha depois.
Esse mais velho falou-lhe de como tudo era diferente do encantamento com que os pregadores de histórias infantis enfeitam as histórias infantis. Era o pior préstimo que a literatura infantil podia ter para quem a lia. O mais velho prometeu que a idade depois não era o pior dos mundos. Podia haver cinismo. Muitos logros escondidos atrás de bondade ultrajada. Deceções, sobressaltos, mágoa. A complexidade da idade adulta, que tantas vezes escolhe o caminho que se alija da simplicidade, andando o resto do tempo a recolher cicatrizes das cinzas depostas. Mas esta era uma idade a que estavam prometidos prazeres vários que a meninice desconhece.
O mais velho foi enigmático quando desafiado a enumerar os prazeres. Limitou-se a proclamar “a seu tempo, a seu tempo”. E o rapaz, ao lembrar-se destas palavras que logo na altura reputou de sábias (sem saber porquê), quis despojar-se da meninice. A melhor altura era renegar a puerilidade do natal. Ao menos, já não tinha de suportar a indulgência de alguns mais velhos que o tratavam como se fosse atrasado mental, nem a música insuportável das estrelas do momento que recriam (para pior) essas musiquetas, nem o olhar nostálgico da avó que vinha, ato contínuo, com as histórias repetidas da miséria que combinava com o natal quando ela teve a idade do rapaz.
Descobriu, natais depois, que nesse natal começara a ser hedonista.

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