2.3.15

D. Quixote moderno

In http://www.avedigital.pt/archive/img/ParqueEolicoTerrasAltasdeFafe3.JPG
Se Cervantes fosse escritor nos alvores dos vigésimo primeiro século, tinha de pôr ventoinhas eólicas na onírica dimensão de D. Quixote de La Mancha. Pois já não há moinhos. Em não os havendo, a personagem teria de encastelar os sonhos nas pás que se movem pela batuta do vento que transige no cume das serras. D. Quixote teria de contemplar a fileira de ventoinhas, umas atrás das outras a preencher a cumeada, e dali tecer o enredo dos seus sonhos.
O Rocinante ficaria para provas de equitação; D. Quixote dos modernos tempos viria a trote de uma bicicleta BTT para melhor sulcar os trilhos serranos que levam às cumeadas. Dulcineia já não seria uma platónica paixão, que D. Quixote, como personificação da modernidade, não se ficaria pela dimensão etérea de um amor ausente. Quixote trataria de se enamorar (no sentido pragmático da palavra – a ver vamos o seu significado pelo espelho da atualidade) de uma Sónia qualquer, nem se exasperando ao notar que a Sónia requisitada dispensa o acento grave ao escrever o seu nome de batismo. Quixote só queria saciar os prazeres voluptuosos, pois o hedonismo não deixa lugar a personagens embebidas num lirismo atávico. Depois dos prazeres, diria à Sónia requisita para ir à sua vidinha, partindo em demanda de uma Patrícia, de uma Deolinda, ou de uma Augusta noutras paragens por visitar. E D. Quixote já não andaria com o pajem Sancho Pança, que estes não são tempos que admitam vassalagens deste calibre. Aliás, só lhe podiam chamar Quixote, que os “Dom” fazem parte de uma nobreza esbatida nas sombras do passado.
Contudo, como proeminente personagem de um reino acastelado nos sopés das montanhas dominados pelas ventoinhas eólicas, Quixote teria uma trupe. Seguidores que o acalmam como guru espiritual, emulando-o nos dizeres, repetindo-o na roupagem e no corte de cabelo, na barba hirsuta em voga, nos meneios que fazem escola. E Quixote de La Mancha, ou Serafim de Carrazedo de Montenegro, lá ia de tasca em tasca, de boite em boite, bebendo, comendo, sonhando com o vento que se deita nas pás das ventoinhas eólicas e deitando dente a umas donzelas destravadas.

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