3.3.15

Duas tranças e uma fatia de toucinho fumado

Davendra Bahnart, “Feels Just Like a Child”, in https://www.youtube.com/watch?v=PhW7FLo6peU
Acordar já quando a tarde manda no relógio era hábito que prometera banir. As preleções da alma, todavia, tinham repetida procrastinação. Não sabia que a vontade podia ser domada por tamanhas forças ocultas. Era isso e a apetência para a falta de banho. Comprazeu-se um dia, ao ler num jornal gratuito (amarrotado no banco do comboio), que quatro em cinco mulheres não tomam banho todos os dias. Assim como assim, com ele a coisa ia de dia em dia, até a sua própria pituitária exigir tratos de higiene para o absolver do um cheiro fétido até para os seus pouco exigentes padrões.
Poucas coisas o incomodavam – não levasse ele a vida com a ligeireza de quem não sabia em que dia está, ou que horas são, ou que afazeres tem de cumprir (predicados de quem dispensava uma agenda, sequer mental). Um punhado delas fazia franzir o sobrolho, sem chegarem para acelerar o pulsar das veias ou trocar o perene estado aéreo e a fleuma que – poder-se-ia dizer – era britânica.
Um: velhinhas no parque alimentando pombos. Tinha uma irritação com pombos desde que um defecara em cheio num gorro de estimação que estava gasto. Não que o gorro fizesse gala à limpeza, que estava tão encardido que já pedia, e há algum tempo, imersão em água e detergente. Foi por isso que não perdoou ao pombo incontinente: ter sido obrigado a ir a uma lavandaria pública para retirar os restos fecais da ave. O gorro nunca mais foi o mesmo (limpo como veio da máquina de lavar).
Dois: estudantes envergando o autoproclamado traje académico. A prosápia de uns, talvez líderes da turba, que comandam a turba aos gritos de claque. As bebedeiras colossais. O adiamento do estudos. E depois ainda o acusavam de ser o maior lunático da cidade; ao menos não andava a fazer de conta que fazia alguma coisa, nem dispensava abundante dinheiro dos progenitores em comezainas, espirituosas bebidas, flirts boçais (eles) e flatulências intelectuais (elas), vergonhoso desempenho académico, vexatórias “socializações” de novatos – e por aí fora.
Um dia, irritado como não sabia ser possível, chegou ao pé de uma pandilha que ensaiava cantares e melodias do catálogo estudantil. Perguntou-lhes, do alto dos seus andrajos e da sua barba rala e deslavada, se queriam ser alguma coisa na vida. Um dos metecos (por os ter como alienadas personagens) ripostou, com desdém, “e quem és tu, meu maltrapilho, para fazeres perguntas aqui aos doutores?” O homem, transido pelos nervos, tirou um papel desbotado e encarquilhado do bolso da gabardine. Era um diploma. Passado por universidade estrangeira. Doutoramento em filosofia.
Os “doutores” não se ficaram. Prosseguindo com o desdém e tirando o lustro à bazófia de marca, riram-se, em gargalhada farta, do (assim o viam) maltrapilho. Um deles, em surdina, atirou: “valeu-te de muito o doutoramento...”. Ao que o homem, sossegando os nervos, ripostou: “e vocês, estão a estudar para quê?” A algazarra estudantil parou no instante. Os metecos dispersaram, sem saberem se a pergunta tinha resposta.

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