31.3.15

O oitavo mandamento: não escarnecerás dos pontapés na gramática dos outros

Múm, “Sing Along”, in https://www.youtube.com/watch?v=VeaRDcdwrZg&list=PL33kNpqOQ7kQm4W0TUEfGfojApwae_TzA
Passa na televisão uma rubrica, que dura um singelo minuto, sobre a arte de dominar a língua materna. É lançada uma pergunta, normalmente “como se escreve a seguinte palavra”, e oferecidas duas hipóteses de resposta. Uma delas, por via de regra, está certa. Depois vemos imagens do inquérito de rua que apanha o cidadão comum com o propósito de – não sei bem – instruir o público acerca do domínio da língua materna ou enxovalhar os cidadãos apanhados em falso com uma resposta errada.
Já sei: não é, não pode ser, mister dos programadores fazerem corar de vergonha os cidadãos que, em ato generoso, emprestaram o rosto e a ignorância (ou o deslize pontual), como se fossem cobaias para a educação do povo. Mas, no fim de contas, é lá que desaguam as coisas. Imagine-se o cenário montado: somos apanhados na dobra de uma esquina, a jornalista de microfone empunhado a disparar a pergunta sobre a língua materna, fazendo-se acompanhar de uma câmara de filmar a tiracolo que funciona como o agente que intimida. Ato contínuo, escolhemos a opção errada para a pergunta que se nos esfregou no rosto. Tempos depois, no retiro do lar ou no bulício do café a meio do pequeno-almoço com os colegas de trabalho, aparecemos no ecrã em lamentável exibição de pontual ignorância do idioma. Não ficamos bem na fotografia. E não é bonito saber que uma multidão de tele-espetadores, mais instruídos que nós, sabia a resposta certa e, para cúmulo, escarnece do erro na resposta.
Isto faz lembrar alguns proto-catedráticos que, à falta de ocuparem o tempo com coisas úteis, desalfandegam a sua enorme sapiência, ocasionalmente untada com umas pitadas da erudição que os distingue da maralha, mas depois escorregam para o erro ortográfico ou para os atropelos à sintaxe. É quando o povo, na sua anti-erudição que se eleva ao altar do lugar-comum, sentencia que é na melhor fazenda que a nódoa aterra.
Por isso, proponho que as escrituras se abram a um oitavo mandamento: “não escarnecerás dos pontapés na gramática dos outros”. Só dos teus, para tudo ficar em harmonia. (Até porque faz falta a capacidade para não nos levarmos a sério.) E antes que o telhado se abata sobre a minha cabeça, fico já por aqui para não continuar a produção de palavras que me pode levar ao purgatório do ultraje à gramática.

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